Do carro de boi ao monotrilho: o caos de São Paulo explicado desde a fundação da cidade

O Globo – Na obra O desenho de São Paulo por seus caminhos, que será lançada na quarta (24) em uma livraria da Avenida Paulista, a arquiteta e urbanista Andreina Nigriello traça a história da mobilidade na capital desde as primeiras ocupações da região, em tempos pré-coloniais, até os dias atuais.

— O mapa atual do transporte público é totalmente insuficiente — sintetiza Nigriello, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).

A obra apresenta 154 mapas, entre plantas da cidade de séculos passados, croquis do Metrô, o planejamento para a construção de grandes avenidas e o traçado dos bondes pelo município, no século XIX.

— Carecemos desde o início de um desenho que pensasse na cidade como um espaço público para todos — conta Nigriello.

O livro é dividido em capítulos, cada um deles dedicados a contar a história de um meio de transporte. Ao final, Nigriello faz um diagnóstico da situação atual da mobilidade na Região Metropolitana e aponta as regiões que mais carecem do atendimento de meios de transportes rápidos e eficientes, como o trem e o metrô.

— Quando os portugueses chegaram por aqui (no século XVI), só se andava de canoa e a pé. Mais para os fins de 1500 começaram a usar as mulas e os burros, que começaram a vir do Rio Grande do Sul — explica a professora, que por décadas trabalhou na área de planejamento do Metrô de São Paulo.

Entre o fim do século XVI e a primeira metade do século XVII, o território vira ponto de passagem para o transporte de ouro e pedras preciosas e a partir de 1770 aparecem os carros de boi, carregados de cana de açúcar, interligando as áreas de plantio ao porto de Santos.

Foi só em 1866 que a mercadoria começou a ser transportada de forma mais eficiente, com os trens trazidos pelos ingleses, que fundam por aqui a São Paulo Railway, que liga Santos até Jundiaí. Um dos pontos centrais da obra de Nigriello é explicar como a cidade viu por séculos novos modais de transporte surgirem em decorrência da necessidade de transporte de mercadoria, e não da população.

— A cidade nunca foi pensada nem planejada, ela resultou de um processo em que São Paulo era atravessado pela mercadoria. A capital do estado sempre foi a última parada da mercadoria antes de descer para o porto. É um lugar obrigatório de parada, é o espaço que organiza esse processo — diz Nigriello.

Em 1900 surgem os primeiros bondes elétricos, trazidos pela empresa canadense Light. Entre 1900 e 1930 a mancha urbana paulistana era relativamente bem atendida pelos meios de transporte.

— Nesse período, você não tinha pedaços da cidade descobertos — conta a professora.

Depois de 1930, com o fim do ciclo do café e o início da industrialização, a cidade começa a crescer mais e mais e surge a necessidade de espaços de moradia adicionais, que são expandidos sem o planejamento urbano adequado por parte do estado.

— O território da cidade era tomado por chácaras. Os donos dessas chácaras descobrem que podem ganhar mais dinheiro loteando essas terras do que plantando café. O desenho desses loteamentos não conta com uma gestão do estado. Os donos dividem como querem. Por isso em São Paulo você não tem ruas que vão diretamente de um bairro ao outro, você sempre precisa contornar os bairros para chegar no vizinho — narra a professora.

Um dos exemplos seriam os bairros da Vila Mariana e do Paraíso, que possuem diversas ruas internas que traçam círculos, se cruzam em diversos pontos, mas não ligam de forma direta as duas regiões.

— Você não passa pelo meio da Vila Mariana para conseguir chegar no Paraíso. Você contorna a Vila Mariana para depois mudar para o Paraíso — diz Nigriello, que diz que essa lógica é seguida até os dias atuais, quando surgem novos bairros.

Na sequência dos capítulos aparece a expansão das avenidas e rodovias para o transporte de mercadorias como o açúcar e o algodão e depois a extinção dos bondes, concomitante com o surgimento do Metrô, construído a partir de 1968: com o advento do automóvel, as vias da cidade estavam congestionadas demais para suportar os bondes.

Antes do início da construção do Metrô, no entanto, na década de 1950, o frei francês Louis-Joseph Lebret realizou um estudo da cidade, a pedido do então prefeito Wladimir de Toledo Piza, realizando um diagnóstico das áreas mais desassistidas em transporte público e sugerindo um traçado para o futuro Metrô, plano que acabou descartado pela gestão seguinte, de Ademar de Barros.

O estudo, explicado na obra, analisou onde, naquele momento, estavam os empregos na capital paulista — na região central — e onde moravam os trabalhadores. Já naquela época a população demorava até 4 horas para ir da Zona Leste até as regiões com mais postos de trabalho e de 2 a 3 horas para ir da Zona Sul até o centro. Lebret elaborou gráficos para cada um dos bairros paulistanos, indicando as carências de cada região e exibindo um traçado para uma linha de metrô.

— Ele mostra onde estão as indústrias, as áreas de comércio e alerta que o estado está perdendo o controle do crescimento urbano. Avisa que é preciso criar uma rede de transporte rápido e faz um dos primeiros desenhos da rede de metrô. Mas, infelizmente, o Ademar de Barros não seguiu com a ideia e isso se perdeu — afirma Nigriello.

A professora aborda ainda o início dos planos para o monotrilho, na Zona Leste, a Linha 15-Prata. Ao fim da obra ela apresenta uma ilustração que mostra a região metropolitana da cidade de São Paulo e o desenho do transporte por trilhos e mostra, por meio de vetores, os trajetos que são realizados diariamente de áreas periféricas para a região do centro expandido. São longas viagens feitas majoritariamente de ônibus.

— Os vetores indicam a origem e o destino dos deslocamentos. Não há linhas de metrô e trem atendendo essas viagens. O tempo que as pessoas poderiam usar para estudar e descansar, ficam no ônibus — afirma a docente.

A professora conclui que o que a cidade precisa é de linhas liguem de forma direta as diferentes regiões da região metropolitana e também de uma expansão da rede do metrô para as áreas mais desassistidas.

— Hoje, para você ir para bairros fora da região central, você pega o trem ou o metrô e precisa sempre ir para o centro para depois chegar no seu destino. Você faz um triângulo no seu trajeto. Poderíamos ter, por exemplo, uma linha de trem ou metrô que ligasse Guarulhos, ABC e a Zona Leste. Tem muita gente morando na Zona Leste e pouco emprego, mas tem emprego em Guarulhos e no ABC. Se houvesse essa ligação, muita gente estaria usando — finaliza a professora.

O livro O desenho de São Paulo por seus caminhos é publicado pela editora KPMO Cultura e Arte, em parceria com Cultura Acadêmica e é lançado na próxima quarta-feira, 24 de abril, na Drummond Livraria, na Avenida Paulista, 2073, a partir das 19h.

Fonte: https://oglobo.globo.com/brasil/sao-paulo/noticia/2024/04/22/do-carro-de-boi-ao-monotrilho-o-caos-de-sao-paulo-explicado-desde-a-fundacao-da-cidade.ghtml

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