Valor Econômico – É comum escutar que, no Brasil, o modal ferroviário foi abandonado nas últimas décadas, o que prejudicou a capacidade logística do país. Mas um estudo da Fundação Dom Cabral indica que houve um movimento recente de recuperação do uso de ferrovias que elevou a participação do modal no transporte de cargas para 26,9%, patamar inédito. O dado foi alcançado no fim de 2022 (último disponível) e permanece atual.
O desafio agora, segundo os responsáveis pelo levantamento, é não deixar que essa proporção seja perdida e que ela aumente para um desejado 36% para que as rodovias sejam desafogadas e o custo dos produtos transportados – basicamente granéis e minério de ferro – possa ser reduzido.
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“Em todas as projeções, a participação das ferrovias jamais tinha passado 25%. O número mais recorrente era 23%”, comenta Paulo Resende, professor e coordenador do núcleo de infraestrutura, cadeia de abastecimento e logística da Fundação Dom Cabral. Esse crescimento está muito conectado ao transporte de granel agrícola. Mas a participação ideal mesmo seria de 36%, se compararmos o Brasil com as matrizes de outros países de dimensões continentais como EUA, China e Canadá”.
A análise do estudo deixa um alerta de que uma eventual ausência de novos investimentos em ferrovias seria catastrófica para a melhoria logística do Brasil e acarretaria na perda de participação do modal nos próximos dez anos. Por outro lado, Resende afirma que o horizonte está mais para o lado positivo no atual momento. “A perspectiva é boa porque está muito na mão da iniciativa privada e há muita demanda.”
O professor da Fundação Dom Cabral estima que, para que o modal ferroviário alcance os 36% de participação no transporte de cargas, serão necessários cerca de R$ 300 bilhões em investimentos nos próximos anos. Contudo, o cálculo indica que, ao chegar nesse patamar, as empresas economizariam R$ 30 bilhões por ano no transporte de cargas. “Ou seja, em dez anos o investimento se paga. Vale a pena fazer”, defende.
Uma locomotiva pode engatar cerca de 80 vagões de soja. Cada vagão transporta o equivalente a dois caminhões e meio. “Portanto, estamos falando que cada composição de ferrovia substitui 240 caminhões. Não ter a ferrovia e precisar que tudo isso seja transportado por caminhões é terrível. Sem falar na distância. Transportar 25 toneladas andando 2 mil km não gera uma margem boa.”
Atualmente o modal rodoviário representa 62,2% do total de cargas transportadas dentro do Brasil, enquanto os modais hidroviário e dutoviário detêm, respectivamente, 4,3% e 3,6%. A navegação de cabotagem representa 2,9%.
Se o modal ferroviário atingir o nível ideal, quem perderá participação no transporte de cargas serão as rodovias, o que é fundamental que ocorra pelo próprio bem do modal rodoviário, do dinamismo da logística e até mesmo dos trabalhadores do setor.
“O Brasil tem um conceito ultrapassado que contamina todas as esferas de decisão e que faz crer equivocadamente que rodovia compete com ferrovia. Isso não existe”, diz Resende. “O mundo moderno, em países concorrentes territorialmente como China, Índia, EUA e Canadá, já entendeu que o ideal é a multimodalidade. Rodar na quilometragem ideal por rodovia alimentando um trecho ferroviário de quilometragem maior. Se tiver como transportar por rio também e assim sucessivamente.”
“Mas no Brasil, quando se diz que vai construir mais ferrovias, vem a reação da rodovia reclamando que vai perder em transporte de cargas. É uma bobagem. Um caminhoneiro autônomo nos EUA que transporta milho por 200 km alimentando uma ferrovia de 3 mil quilômetros ganha dez vezes mais que um motorista autônomo no Brasil, que percorre 2 mil quilômetros com a mesma carga para o porto de Santos vindo de Mato Grosso”, diz. “Esse pensamento ultrapassado ajudou a travar o desenvolvimento do modal ferroviário.”
Mas há outros elementos que fizeram as ferrovias serem “abandonadas” no século passado. Para Natália Marcassa, CEO do MoveInfra, associação que representa empresas de infraestrutura dos vários modais de transporte, nas privatizações da década de 1990, feitas em meio à consolidação do Plano Real e ao ajuste fiscal do governo FHC, o foco principal era eliminar os gastos do sistema ferroviário, e os contratos, naquele momento, foram pouco direcionados a novos investimentos.
Essa lógica mudou na década passada já nas renovações antecipadas dos contratos e foram os estímulos a investimentos dessas renovações que, segundo ela, contribuíram para que o patamar da participação do modal já tenha aumentado para os 26,9% indicados pela Fundação Dom Cabral.
“O Brasil, nos últimos anos, vem debatendo a melhoria de contratos de concessões feitas na década de 90. Hoje temos apenas ferrovias concedidas. Não há ferrovias públicas. Todas são privadas”, explica, ressaltando que a Infra S.A, que planeja e estrutura os projetos do setor, é pública, mas as operações são privadas. “Agora, mais de 20 anos depois, os contratos estão sendo remodelados em busca de mais investimentos.”
A Infra S.A., disse em nota enviada ao Valor que está comprometida em elevar a participação do modal ferroviário para até 47,22% citando o Plano Nacional de Logística. A empresa, vinculada ao Ministério dos Transportes, está responsável pela execução de grande parte da carteira do Programa de Aceleração de Crescimento (PAC) no segmento de ferrovias, sobretudo nas frentes de construção e de estudos e projetos de novas concessões. “Nesse sentido, atuaremos na execução das obras da Ferrovia de Integração Oeste Leste (Fiol), na Bahia, e da Ferrovia da Integração Centro-Oeste (Fico), entre os Estados de Goiás e Mato Grosso. Além disso, a estruturação de novas concessões ferroviárias, a exemplo do Corredor Leste Oeste entre Barreiras (BA) e Lucas do Rio Verde (MT)”, diz a empresa.
“Pensamento ultrapassado ajudou a travar a evolução do modal ferroviário”
— Paulo Resende
Um mapa da Infra S.A. (ver acima) indica quais as novas linhas planejadas e outras que já estão em obras, mostrando que regiões importantes como o Centro-Oeste finalmente podem passar a ter linha ferrovias de longa distância para transportar a produção agrícola até Santos (SP) e demais portos. Os especialistas apontam que a construção da Ferrovia de Integração Centro-Oeste (Fico) é justamente a mais importante no momento para resolver um dos principais gargalos logísticos do país hoje.
“A Fico encontrando com a Fiol [Ferrovia de Integração Leste Oeste] formará uma cruz ferroviária brasileira. A norte-sul já está implementada na sua parte norte-central e pode chegar até o Rio Grande do Sul e o porto de Paranaguá, o que possibilitaria transportar inclusive o granel produzido na Argentina, Paraguai e Uruguai. Isso finalizado, teríam uma cruz ligando o Centro-Oeste ao leste e obviamente um corredor que coincide com a Ferrogrão, indo para o Arco Norte. Se esses projetos forem efetivamente executados, o Brasil acrescentaria nos próximos anos cerca de 8 mil km de ferrovias novas e atingiríamos os 36% que precisamos de participação no transporte de cargas”, explica Resende, da Fundação Dom Cabral.
Outra questão logística que precisa ser resolvida, segundo especialistas ouvidos pelo Valor, é a ampliação de portos fluviais e marítimos no Norte e no Nordeste – o chamado Arco Norte – para desafogar sobretudo o tráfego intenso para o porto de Santos. “O Centro-Oeste e partes do Nordeste, na área habitualmente chamada de fronteira agrícola, é uma região que representa metade da Europa se retirarmos a Rússia e é um território que ainda não tem nenhum quilômetro de ferrovia, mesmo sendo a maior região produtora de granéis agrícolas do mundo em termos de densidade de produção – por hectare – de soja e milho. Isso é uma tragédia em custos logísticos, pois esses produtos todos são transportados por caminhão em portos que ficam a mais de 2 mil quilômetros de distância”, critica o professor da Fundação Dom Cabral.
Para os defensores da expansão do modal ferroviário, a proteção ao meio ambiente é mais um motivo para que os investimentos em novas ferrovias sejam efetivados para aumentar os cerca de 31 mil quilômetros atuais – desse total de trilhas para cargas, porém, a Associação Nacional dos Transportes Ferroviários estima que quase metade está subutilizada, desativada ou inoperante por não serem linhas economicamente sustentáveis.
“No contexto ESG, vale destacar que modal ferroviário é mais sustentável que o rodoviário. Tanto o ferroviário quanto o hidroviário podem ganhar corpo através da sustentabilidade do meio ambiente, pois produz baixa emissão de gases do efeito estufa em comparação a caminhões”, afirma o presidente da Associação Brasileira da Indústria Ferroviária (Abifer), Vicente Abate.
Ele cita como exemplo a Ferrogrão, projeto de 900 km apoiado por grandes produtores de Mato Grosso, que conectará Sinop ao porto fluvial de Miritituba, no Pará. “A ferrovia correrá paralela à [rodovia] BR-163 proporcionará a redução de 1 milhão de toneladas de CO2 ao ano, no mínimo, considerando que hoje a rodovia tem tráfego diário de aproximadamente 4 mil caminhões”, diz.
Na visão de ativistas ambientais, o cálculo é mais complexo quando se trata de construir ferrovias que cortam regiões como a Amazônia, como é o caso da Ferrogrão. O projeto, que tem origem ainda no governo Dilma Rousseff (PT), passou por uma tentativa de sair do papel na gestão de Michel Temer (MDB), quando o governo alterou os limites do Parque Nacional do Jamanxim, no oeste do Pará. Isso provocou uma ação de inconstitucionalidade movido pelo Psol em 2020 e constantemente ativistas brasileiros e internacionais denunciam a incoerência da iniciativa com a sustentabilidade ambiental.
“Em termos de infraestrutura, o grande ponto que pode melhorar é o Arco Norte. Miritituba, Itaituba. Tem potencial, mas é uma ferrovia de quase de mil quilômetros com licenciamento sensível porque é na Amazônia. Seria importante, mas a implementação não é trivial”, reconhece a CEO do Move Infra. “Talvez nesse caso precise ser uma obra pública para aguentar todo o desaforo do tempo do investimento que precisa para dar o retorno.”
Apesar do imbróglio especificamente sobre a Ferrogrão, em agosto, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) incluiu a ferrovia no Novo PAC – o programa de investimentos do governo. As obras foram incluídas na modalidade “estudos de novas concessões”. A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) estima que será necessário investir de R$ 8,26 bilhões na construção dessa ferrovia, que faz parte da projeção do estudo da Fundação Dom Cabral para que o modal ferroviário atinja o nível de participação ideal para reduzir os custos logísticos do país.
“Hoje temos de fato um modal ferroviário maior do que era cinco anos atrás e com tendência grande de crescer”, afirma o presidente da Abifer.
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