É preciso salvar a ferrovia urbana de passageiros do Rio de Janeiro

Sérgio Avelleda
é sócio-fundador da Urucuia: Mobilidade Urbana e coordenador do Núcleo de Mobilidade Urbana do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper

A pandemia, como todos sabem, afetou duramente  o transporte urbano de passageiros.  Outras atividades econômicas passaram  pela pandemia com sofrimento, é verdade,  mas com capacidade de ajustar a oferta de serviços e  bens de acordo com a demanda fortemente reduzida  daquele período. Por outro lado, o transporte urbano  de passageiros não pode valer-se dessa faculdade. A  oferta de serviços, salvo ajustes pontuais, manteve-se  em níveis muito acima da demanda de passageiros,  que caiu em média 75%, justamente para assegurar o  funcionamento das cidades e de outras atividades consideradas  essenciais. 

Os sistemas de transporte, na imensa maioria das  cidades, sobreviveram por conta dos aportes públicos  para cobrir a insuficiência de recursos para o pagamento  da produção dos serviços. A redução da arrecadação  tarifária obrigou entrar em cena o subsídio público. 

Algumas cidades que não puderam ou não quiseram  subsidiar assistiram ao colapso dos operadores de transporte  ou a uma degradação completa da saúde financeira,  refletida diretamente na capacidade operacional em  prosseguir a prestação dos serviços. 

No Brasil, o caso mais emblemático é o sistema ferroviário  de transporte de passageiros, operado por uma  concessionária privada, a conhecida Supervia. 

A malha ferroviária urbana do Rio de Janeiro atende  12 dos 22 municípios da segunda maior Região Metropolitana  do Brasil e é herdeira das primeiras linhas  férreas implantadas por aqui. Surgiu em 1852, quando  o visionário Barão de Mauá lançou a pedra fundamental  no Porto de Magé. Depois veio a Estrada de Ferro D.  Pedro II (Central do Brasil, na República) até chegar à  CBTU, na segunda metade do século XX. Atualmente  opera 270 quilômetros de vias férreas, em cinco linhas  e 104 estações. 

Vítima do abandono das ferrovias brasileiras – um  dos grandes crimes cometidos por nós contra o nosso  próprio país – a malha ferroviária foi estadualizada e  privatizada em 1998, quando a qualidade operacional  era péssima e a demanda de usuário já tinha caído de  impressionantes um milhão por dia para algo em torno  de trezentos mil. Ao longo da concessão, a demanda foi  lentamente crescendo, como resposta aos investimentos  que foram sendo realizados. 

A partir da privatização, um sopro de esperança chegou  com investimentos públicos e privados. Novos  trens com qualidade comparável aos melhores sistemas  do mundo, melhorias na infraestrutura das vias, modernização  da sinalização e do sistema de energia, levaram  a demanda a voltar a crescer. 

Contudo, em um passado recente, todos esses investimentos  começaram a se perder. Ao que parece um  abandono pelo Poder Concedente somada a uma disputa  jurídica com a Concessionária e, talvez, uma falta de intimidade desta com a cultura e as peculiaridades locais,  ameaçam, como nunca, a existência desse imenso  patrimônio do povo brasileiro. 

Nos últimos dois anos assistimos uma deterioração  aguda das condições operacionais: as questões de segurança  pública são tão graves que algumas estações  sequer são controladas pela concessionária. Tiros nas  composições em trânsito, furtos de ativos essenciais  para a segurança operacional, domínio de trechos das  vias por organizações criminosas, mostram o abandono  pelo Poder Concedente da execução das suas mínimas  tarefas. Recuperação judicial da concessionária, ameaça  de falência e consequente perda da capacidade de seguir  operando, também ocupam as manchetes dos matutinos  cariocas. Essa mesma estrutura ferroviária, que  já transportou mais de um milhão de passageiros por  dia, hoje não chega a trezentos mil passageiros por dia. 

Não tenho a menor condição e nem pretensão de  apontar culpados, responsabilidades ou indicar a receita  para a solução dessa crise. Mas não posso deixar de registrar,  nesse espaço, a indignação e tristeza em assistir  o colapso de uma fundamental infraestrutura de mobilidade.  Penso que ainda há tempo para salvar, mais uma  vez, a malha ferroviária do Rio de Janeiro. 

É preciso vontade política, liderança, competência  técnica e, fundamentalmente, compromisso com o patrimônio  público. Uma força-tarefa deveria ser criada  com a tarefa específica de recuperar a ferrovia. Recentemente,  a Prefeitura do Rio, em período muito curto  de tempo, recuperou integralmente o sistema de BRT,  completamente degradado até o começo de 2020. Está  provado, pois, que é possível. 

Tal como Fênix, a ferrovia fluminense já renasceu das  cinzas, em 1998. Oxalá encontre forças para novamente  se revigorar, voltando a ser uma solução de mobilidade  urbana sustentável, segura e eficiente para milhares de  cidadãos brasileiros do Rio de Janeiro. 


  


2 Comments

  1. Administração pública não se interessa em achar soluções, prefere abdicar da gestão da malha ferroviária. O transporte ferroviário é responsabilidade de políticas públicas. O setor privado deve apenas focar a eficiência do modal não se responsabilizando pela incompetência dos gestores públicos.

  2. O descaso com a malha da hoje Supervia, e o seu consequente abandono à própria sorte, tornou-se ainda mais grave com a presença do poder paralelo da criminalidade nas áreas atendidas.
    Agora será necessário bem mais do que os desejáveis planejamentos e investimentos na própria ferrovia. Estes deverão ser somente parte de um pacote bem mais amplo, que inclua também extensas políticas sociais e de segurança fortemente presentes. Promovendo assim o retorno efetivo da presença do estado nessas e em outras regiões da metrópole Fluminense.

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