Miopia estratégica põe o Brasil fora dos trilhos

Após a
paralisação dos caminhoneiros, em maio, o trem saiu do obscurantismo (99,9% da
população brasileira nunca andou de trem) para o centro dos debates ligados à
mobilidade, segurança viária e abastecimento. Não foi à toa: quando a conta de
dez dias de paralisação chegou, o PIB havia caído 1%, apenas alguns trilhões de
reais.

Investimentos
em ferrovias demandam vultosos recursos, demoram muito para ficarem prontos e,
consequentemente, o retorno do capital investido por empreendedores privados se
dá somente após alguns anos após o início da operação. Portanto, faz sentido o
Estado bancar obras ferroviárias e arrendá-las à iniciativa privada por longo
prazo.

Esse modelo
somente foi adotado no Brasil a partir de 1996, quando 28 mil quilômetros da
malha ferroviária foi transferida para operação da iniciativa privada por 30
anos. As atuais concessionárias acham o prazo insuficiente e querem a renovação
das concessões por idêntico período, assumindo, em troca da benesse, algumas
obras ferroviárias como o Ferroanel de São Paulo e a Fico (Ferrovia da
Integração Centro-Oeste). É muito pouco em face do que o país precisa.

Os
governadores do Espírito Santo, Paulo Hartung; e do Pará, Simão Robinson;
perceberam a pobreza desses projetos e ameaçaram paralisar o processo de
renovação das atuais concessões sob a alegação de inconstitucionalidade.
Acuado, o governo tirou da manga a religação ferroviária entre Rio e Vitória
(EF118) para acalmar Hartung, com direito a pit stop no Porto do Açu, no Rio de
Janeiro; e o Pará foi presenteando com o tramo Norte da famosa ferrovia
Norte-Sul, interligando Barcarena, no Pará, a Açailândia, no Maranhão. Os
recursos viriam do tal Fundo de Desenvolvimento Ferroviário Nacional (FDFN), a
ser criado por medida provisória.

Ora, a ideia
do fundo ferroviário não é novidade no país da jabuticaba. Por volta dos anos
1950, o Estado brasileiro precisava de recursos para tocar obras ferroviárias e
criou o primeiro Fundo Ferroviário Nacional (Lei 1272-A, de 12/12/50). A ideia
pegou.

Em 1962 esse
fundo foi reformulado, surgindo o Fundo Nacional de Investimentos Ferroviários
(FNIF) e, em 1969, criaram o Fundo Federal de Desenvolvimento Ferroviário. O
último, gestado em 1974, é o Fundo Nacional de Desenvolvimento, cujos recursos
foram transferidos para o setor rodoviário. Muita troca de siglas, poucos
resultados.

De lá para
cá conhecemos o fim da história: o transporte sobre trilhos foi rebaixado para
a Série “C”, sendo praticamente extinto o transporte de passageiros em média e
longa distância. Só restaram trens de passageiros nas ferrovias da mineradora
Vale: Carajás e Vitória-Minas. O tamanho da malha para passageiros ficou com
pouco mais de mil quilômetros, basicamente restritos às regiões metropolitanas
de Rio, São Paulo, Minas, Brasília, Porto Alegre e algumas cidades do Nordeste.

A realidade
é que as concessionárias transportam somente cargas dos seus acionistas, sendo
mais de 90% commodities exportáveis: minério de ferro, produtos siderúrgicos,
soja, milho etc. Ou seja, o nosso atual modelo ferroviário não serve ao povo
brasileiro.

Praticamente
não há espaço nos trens para a carga geral que faltou nos postos de
combustíveis, supermercados, farmácias etc. E o tal FDFN não vai ajudar a melhorar
essa dependência do setor rodoviário.

Esse fundo
não é o mesmo Fundo Ferroviário Nacional (FFN) que estamos pleiteando há
tempos, destinado à implantação de trens regionais de passageiros, trens
turísticos e pequenos cargueiros para carga geral (short lines, muito comuns na
Europa). Os recursos do nosso FFN seriam aplicados, em parte, nos 15 mil
quilômetros de linhas ociosas e abandonadas pelas atuais concessionárias, que
as classificam como antieconômicas, pois só querem operar no filet mingon dos corredores
de exportação, que somam pouco mais de 10 mil quilômetros.

O governo
descarrilou mais uma vez ao anunciar projetos ferroviários destinados somente a
interligar os corredores de exportação. Foi incapaz de conceber um projeto
estratégico de integração territorial, unindo o país de norte a sul,
especificamente na faixa litorânea, onde vivem mais de 80% da população e se
concentram quase 75% do PIB. Focou só na carga e esqueceu o passageiro.

Mesmo que
isso não aconteça por enquanto, devido à latente miopia no DNA palaciano, o
governo deveria, por obrigação moral, exigir nos contratos de renovação das
atuais concessões que estas passem a transportar um percentual mínimo de carga
geral e passageiros, que fosse crescendo ano a ano. Senão, vamos continuar vulneráveis
ao humor dos caminhoneiros. Oremos, pois!

 

Fonte: http://www.jb.com.br/artigo/noticias/2018/07/28/miopia-estrategica-poe-o-brasil-fora-dos-trilhos/


Fonte: Jornal do Brasil, por Antônio Pastori

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