Linha do “Trem das Onze” tem museu no Jaçanã

Desativada desde 1965, a ferrovia da Cantareira, que inspirou a música Trem das Onze, de Adoniran Barbosa – cuja letra dizia minha mãe não dorme enquanto eu não chegar” -, está coberta por asfalto e construções. Um pequeno trecho dos trilhos é guardado pelo aposentado Sylvio Bittencourt, 77, no Museu do Jaçanã (rua São Luiz Gonzaga, 30, tel.: 2241-4286).


O local é improvisado em um galpão próximo àquele onde ficava a estação. Bittencourt fundou em 1983 o museu, onde expõe antigas lanternas, uniformes de maquinistas e fotos de atores que filmavam na Cinematográfica Maristela – entre eles, o próprio Adoniran, que participou de Carnaval em La Maior (1955) e Pensão de Dona Stela (1956).


O relato de um trem que passaria às onze da noite para o Jaçanã tem horário aproximado e não exato. A única partida próxima ocorria na Vila Mazzei, às 22h59 – mesmo assim, somente aos domingos e nos feriados. Nos dias úteis, a última composição passava às 21h45.


Fora dos horários marcados, as partidas só se davam em ocasiões especiais, como ocorreu com Antonio de Castro, 80. Maquinista na década de 50, ele precisou levar Jânio Quadros, então governador do Estado (1955-1959), ao Horto Florestal, em outra linha da ferrovia. Ele quis passear e eu era o único de plantão. Na hora de voltar, o trem, a diesel, não ligava e, acostumado com o movido a vapor, tive que aprender a resolver na hora, senão imagina, afirma o ex-maquinista.


Diretor do curta Lembranças do Trem das Onze, Rogério Nunes escreve artigo para a Folha sobre a influência do trem da Cantareira nas regiões por onde passava


Tietê, era intenso o tráfego de pessoas, carroças, carros e bondes. Na beira do rio, alguns caboclos com linha e anzol fisgavam carás, lambaris e taraíras.


Remadores se afastavam do Club Esperia, com seus barquinhos de regatas. Na outra margem, a algazarra das lavadeiras, rindo alto e rinhando com as crianças. Era admirável a brancura dos lençóis que quaravam na relva, em contraste com a água suja que a fábrica de papelão despejava dentro do rio.


Mais adiante, dezenas de trabalhadores construíam uma ponte sobre o nada! Era a futura ponte das Bandeiras. Somente depois de concluída a obra é que o Tietê foi passar por debaixo dela, com a retificação de seu curso. Era o progresso… O ano era 1941, ou 42?


A extensa faixa desabitada e alagadiça por onde o Tietê corria, sinuoso, era a fronteira entre dois mundos: de um lado a cidade, pulsante e próspera e, do outro, os bairros pobres, semi-rurais. Os reflexos do isolamento são sentidos até hoje, no brio das famílias que, tradicionalíssimas e um pouco antiquadas, são orgulhosas por habitarem, durante gerações, o mesmo bairro, a mesma rua, a mesma casa.


O bonde seguia pela Voluntários da Pátria que, com seu comércio, já era o coração do bairro. O final da linha do bonde cruzava os trilhos do trem da Cantareira. Não demorava para o trem aparecer, sofrendo com a subida antes da estação Sant’Anna (naquele tempo, se escrevia assim). Uns desciam, outros subiam nos vagões de madeira lotados. Todos com roupas chamuscadas por fagulhas.


Depois o trem subia a rua Alfredo Pujoll, soltando uma fumaça escura. Parava no quartel da Tropa Federal, hoje quartel do CPOR, onde um dia existiu a sede da fazenda Sant’Anna. O velho quartel, com as instalações da aeronáutica no Campo de Marte, a Academia do Barro Branco, o Decap e vários batalhões militares e delegacias, legaram à zona norte um viés militarista, inclinado à direita, perceptível nas conversas de boteco ou entre um pingado e outro nos balcões das padarias.


O trem seguia serpenteando por entre morros, parando em estações incrustadas numa paisagem semi-rural, até chegar na Serra da Cantareira, onde a “italianada” do Brás ia fazer piqueniques aos domingos.


A Cantareira e o seu parque foram um obstáculo natural ao crescimento ao norte. Enquanto a faixa urbana se estende de 35 km a 40 km a partir do centro, o Tremembé, no pé da Cantareira, está a somente 15 km da Praça da Sé, e ainda mantém ares de cidade do interior.


Colonizado por imigrantes alemães, holandeses, poloneses e russos, o bairro foi muito fotografado e documentado pelas famílias que foram para lá, mais ricas e intelectualizadas. Suas construções, também mais sofisticadas, hoje atraem a cobiça imobiliária. Dizem até que o Josef Mengele morou lá.


O outro ramal do trem da Cantareira, o de Guarulhos, era talvez menos romântico. Servia com freqüência ao Sanatório de Lázaros Padre Bento e ao antigo Hospital São Luis Gonzaga, na baixada do Guapyra.


Essa região, segundo alguns, ficou tão associada à doença de Hansen que lhe mudaram o nome para Jaçanã. Lá ficavam também os estúdios da Cinematográfica Maristela, onde Adoniran Barbosa atuou no filme “A Pensão da Dona Stella”. Para chegar lá, Adoniran ia de trem, rotina que teria inspirado a canção “Trem das Onze”.


Ainda sobre os trilhos da Cantareira, o trem contornava a mansão de William Harding, o inglês que loteou aquela região, em 1903. Originalmente, ele batizara o loteamento de Villa Harding, mas o nome, que ainda figura nas escrituras mais antigas, não pegou. Ficou Tucuruvi, corruptela de Itaguarovy, taquara verde em tupi, segundo alguns.


Mas Harding contribuiu de outra forma na criação dos nomes do bairro. Quando a região era uma grande pastagem, e o transporte, feito por carroças ou cavalos, o trem era um luxo de que o inglês não abria mão.


Antes da inauguração das estações do trem da Cantareira, Harding se punha ao lado da linha e, quando o trem aparecia, acenava com vigor. Alguém de dentro do trem gritava para o maquinista “Pára! Pááára para o inglês!”. Com o tempo, o lugar ficou conhecido como a parada do inglês. Em 1927, foi construída no local a estação Parada Ingleza (com z), que deu nome ao bairro que, por sua vez, deu o nome à estação de metrô, na avenida Luis Dumont Villares _que, apesar de existir há quase 30 anos, ainda é chamada de avenida Nova.


Eu sou um saudosista. Sinto saudades de lugares que não conheci e de pessoas que nunca encontrarei. Este meu passeio foi roubado da memória de dezenas de velhinhos com quem conversei, ao longo dos anos. No entanto, como depositário da lembrança alheia, eu ainda correria até a avenida Tiradentes, onde o Bonde 42, do famoso motorneiro chamado Bailarino, me levaria para sei lá onde, qualquer direção da paulicéia que eu não conheci.


 



 

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Fonte: Folha de S. Paulo

2 Comentários

  1. Morei no alto de dmSantana na decada de 60 e me recordo um pouco dos trilhos na Voluntarios da Patria. Havia uma estacao, se nao me engano onde constriuiram pequeno shopping.

  2. Senti muinta dor ao ler este fabuloso momento historico de Sao Paulo. Sempre guardarei a memorial. Obrigado.

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