Carlos Lessa, professor-titular de economia brasileira da UFRJ
Com o desempenho espetacular da economia chinesa nas últimas duas décadas, apesar de ter sido atingida pela crise de seu principal parceiro, os EUA, a China logrou preservar em 2009 uma significativa taxa de investimento e um crescimento provável de 6% neste ano. O comércio exterior brasileiro com a China vem apresentando um ritmo expressivo de crescimento e, mantida essa tendência, o peso dos negócios com a China crescerá significativamente. Muitos registram com satisfação a perda de posição relativa do comércio Brasil-EUA.
Em tese, é conveniente para o Brasil aumentar exportações para a China. Entretanto, podem ser negócios da China. O Brasil é o grande supridor de minério de ferro da economia chinesa. No âmbito do Mercosul, as exportações siderúrgicas chinesas vêm deslocando o aço brasileiro. Não é um bom negócio comercial nem geopolítico estreitar laços de suprimento de exportações chinesas competitivas com manufaturados brasileiros. Um outro exemplo é, talvez, mais dramático: o Brasil dispõe de excelente couro verde bovino; a China (Hong Kong) e a Itália são grandes importadores desta matéria prima. Os chineses estão fabricando sapatos de couro brasileiro e deslocando o calçado brasileiro do mercado americano. A sofisticação chinesa é tal que têm sido contratados projetistas e especialistas brasileiros, desempregados nos pólos de Novo Hamburgo e Franca pela redução do mercado externo. Talvez venhamos a ver a espantosa venda de calçados made in China nos supermercados do Brasil. Equívoco deste tipo aconteceu com uma amiga, que comprou uma colcha em Tiradentes (MG), certa de estar levando para casa um artesanato regional, e descobriu a etiqueta made in China.
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Suspeito que os chineses estão se inspirando na Inglaterra vitoriana que, no bojo da primeira Revolução Industrial, comprava alimentos e matérias primas para exportar manufaturados para o resto do mundo. No modelo chinês, não está London City; os tempos são outros e os EUA controlam – com sua dívida pública, com o dólar, com o Fed, com Wall Street – o coração estratégico do sistema financeiro globalizado. Os EUA dispõem de um sistema muito maior e mais sofisticado do que a City, porém não controlam os bancos e bolsas chinesas. A China tem, pelo tamanho ciclópico de sua reserva internacional em trilhões de títulos do Tesouro Americano, pelo menos a possibilidade de um tácito acordo bilateral, segundo o qual a China tenta ser uma Inglaterra renovada, que respeita a hegemonia financeira americana.
Quando presidente do BNDES, tive a oportunidade de um ensaio preliminar de negociação com o Banco Industrial da China. Pretendíamos acelerar a instalação da Ferrovia Norte-Sul e da Trans-Nordestina. A proposta preliminar chinesa foi fornecer os projetos de engenharia, os trilhos, as locomotivas e a mão-de-obra chinesa necessária para a execução das obras; como principal vantagem, acenava com o mercado chinês para os produtos derivados desta infraestrutura: soja, dendê, algodão, açúcar etc. Eu disse que o BNDES tinha o compromisso com o desenvolvimento da engenharia, da tecnologia, da metalurgia, da fabricação de máquinas; disse que o Brasil era industrializado e que seu principal problema social era gerar emprego e renda para os brasileiros. Ouvi dizer que os chineses propuseram à Argentina e ao Chile fazer um moderno super-túnel pela Cordilheira dos Andes, de modo a intensificar – via Pacífico – a integração do Cone Sul latino-americano com a China. Se esta proposta chinesa vier a ser aceita e se assemelhar àquela que rejeitei, acenderei velas de despedida para a sonhada integração sul-americana.
Soube pela mídia brasileira de uma proposta chinesa para um mega-financiamento para a Petrobras executar o programa do pré-sal. Este pode ser um negócio da China, para a China posicionar o Brasil como supridor de petróleo bruto. Nada poderia ser pior para o Brasil do que converter nosso país em exportador de petróleo. Para o Brasil, é melhor dispor de ouro negro em vez de títulos denominados em dólar. O sonho brasileiro da industrialização e da integração social (até hoje postergada) depende de nossa inteligência estratégica em relação ao pré-sal como alavanca de uma industrialização e de uma nova pauta de exportações de manufaturados, exequível se dispusermos de energia.
Do ponto de vista estrutural, as potencialidades brasileiras são superiores às chinesas. O Brasil não tem problema de produção de alimentos; a China já tem este problema devido à queda do lençol freático da região norte. As águas chinesas, antes sustentáculos da agricultura, estão sendo utilizadas cada vez mais para a industrialização e a população urbana. Neste particular, o Brasil, com 80% de sua população urbana e 50% metropolitana, já viveu o primeiro capítulo (certamente trágico) da transumância da população do campo para a cidade; na China, mais da metade da população ainda é rural.
A integração social brasileira exige educação, saúde, segurança e habitação para os milhões de famílias pobres urbanas e metropolitanas. Esta gente brasileira precisa de emprego de qualidade e renda. Somente é possível fazê-lo com um país industrializado. Isto exige aumentar a disponibilidade de energia por brasileiro – podemos fazê-lo, pois temos reservas hidráulicas, o pré-sal e iremos desenvolver recursos bioenergéticos. Nosso principal ponto de estrangulamento é a péssima rede nacional de transporte, predominantemente rodoviária. Operamos nossa economia com fretes hiperelevados; a redefinição da logística brasileira com ferrovias de integração, navegação de cabotagem na linha da costa e nas principais bacias fluviais produziria uma espetacular redução dos custos de frete. O significado econômico disto é a elevação geral da produtividade da economia e a redução do preço relativo de bens e serviços para o brasileiro consumidor. O mercado interno se ampliaria e, pela industrialização, teríamos os empregos desejados por nossa juventude.
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