Os espanhóis têm uma expressão certeira para se referir a
uma história fantástica, cheia de artifícios e detalhes interessantes, mas com
final inevitavelmente decepcionante: “cuento chino”. A gíria
castelhana poderia se aplicar à promessa de uma ligação ferroviária entre o
Atlântico e o Pacífico, cortando a Cordilheira dos Andes e todo o Planalto
Central.
Anunciada com pompa pela ex-presidente Dilma Rousseff, a
Ferrovia Bioceânica tornou-se símbolo da aproximação com a China, que trouxe
engenheiros de Pequim para estudar o traçado e acenava com investimentos
bilionários para tirar esse megaprojeto do papel. Hoje ela é tratada como
heresia no governo Michel Temer, após a entrega pelos chineses dos estudos de
viabilidade, com uma fatura estratosférica: o empreendimento custaria, na
melhor das hipóteses, US$ 49 bilhões – R$ 155 bilhões – apenas até fazer
conexão com a Norte-Sul, sem levar em conta a descida rumo ao litoral brasileiro.
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Dinheiro suficiente para construir mais de cinco usinas de
Belo Monte. Para o Paris Saint-Germain contratar 188 jogadores ao preço de
Neymar. Dependendo do trajeto do lado peruano, o investimento necessário
subiria para mais de US$ 70 bilhões. Obviamente o plano acabou engavetado em
silêncio.
O anúncio da Bioceânica movimentou a visita do
primeiro-ministro Li Keqiang a Brasília, em maio de 2015, como um projeto
triangular Brasil-Peru-China. No mês seguinte, Dilma lançou a segunda etapa do
Plano de Investimentos em Logística (PIL 2) com a ferrovia como principal
destaque. Ela foi orçada à época em R$ 40 bilhões, apenas no lado brasileiro,
mas já contando o trecho entre a Norte-Sul e o Porto do Açu (RJ). Feitos os
estudos, a projeção explodiu para US$ 22 bilhões – R$ 69 bilhões – somente
entre a fronteira amazônica e o município de Campinorte (GO), sem a travessia
até o litoral fluminense.
Ao contrário do que vendia o Palácio do Planalto naquele
momento, os asiáticos não estavam tão disponíveis assim para bancar a ferrovia.
“Os chineses até se colocaram como potenciais parceiros para o funding da
obra, mas por meio de empréstimo com garantias soberanas, o que é muito difícil
para o atual contexto brasileiro”, afirmou o secretário de fomento e
parcerias do Ministério dos Transportes, Dino Antunes Batista. Todas as
estimativas de investimentos, segundo ele, já levavam em consideração material
rodante (locomotivas e vagões), além de desapropriações e compensações
ambientais.
Em relato aos senadores da Comissão de Infraestrutura,
durante audiência pública na semana passada, Batista explicou que foram
estudadas três alternativas de traçado no Peru. A preferida do Brasil era pelo
norte do país vizinho, onde haveria menos dificuldades topográficas – a
altitude máxima é de 2.700 metros – e saída pelo porto de Bayovar.
Os peruanos manifestaram nítida preferência pelo uso de um
porto mais ao sul, em Huacho, nas proximidades de Lima. Alegaram que a ferrovia
passaria por uma região com mais densidade econômica. Esse trajeto, no entanto,
passaria por montanhas de 4.500 metros de altitude. O custo das obras
ultrapassaria US$ 70 bilhões.
Até problemas aparentemente menores surgiram. Os trens no
Peru usam bitola convencional, com separação de 1,44 metro entre os trilhos; no
Brasil, são de 1,6 metro. Isso impediria a passagem das composições de um país
para outro e exigiria transbordo das cargas na fronteira, atrasando as
operações e aumentando o custo do frete. Eram questões que poderiam ser
discutidas, mas Batista admite que as conversas estancaram com o novo governo do
presidente Pedro Pablo Kuczynski, que assumiu em julho do ano passado. “A
interlocução com o lado peruano tem sido difícil.”
Diante de todas as dificuldades colocadas, o secretário
esclarece que a aposta brasileira se volta agora à construção de trechos “independentes”
da Bioceânica – que, aliás, eram estudados antes mesmo do projeto com a China.
São os casos da Ferrovia de Integração do Centro-Oeste (Fico), que já tem
projeto básico de engenharia pronto, e de uma extensão até Vilhena e Porto Velho
(RO). Não se descarta trabalhar em parceria com os asiáticos para viabilizar
esses trechos. “As tratativas continuam”, diz Batista.
O secretário finalizou sua apresentação no Senado,
entretanto, com um diagnóstico nada entusiasmado dos estudos feitos até agora para
a ferrovia transcontinental. “Considerando a impossibilidade de alocação
de recursos humanos e financeiros por parte chinesa para a revisão das
inconsistências apontadas, a equipe brasileira avaliou o estudo como concluído,
mas não aprovado para fins de avaliação quanto à pré-viabilidade do
empreendimento em tela”, concluiu Batista, no relato aos senadores.
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