Dona Nicinha, Evandro Medeiros, Antônio Alves e João de
Mariazinha não se conhecem, mas têm algo em comum: são cidadãos processados
criminalmente pela Vale S.A., uma das maiores mineradoras do mundo. Eles são
acusados de interrupção ou ameaça de paralisação da Estrada de Ferro Carajás
(EFC), operada pela empresa desde 1985. A ferrovia, de 972 km de extensão
atravessa, 27 municípios no Pará e no Maranhão, incluindo terras indígenas,
quilombos e 22 unidades de conservação.
Este ano marca o final da duplicação da EFC, iniciada em
2013, e que gerou em 2015 uma suspensão da licença de instalação, já revertida,
por irregularidades no processo de licenciamento. Os 559 km de trilhos
duplicados servem ao escoamento do minério da mina S11D, no Pará, que começou a
operar em 2016 – “o maior projeto de minério de ferro da história da
empresa e da indústria da mineração”, segundo a Vale.
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Levantamento da agência Pública identificou que, nesses
cinco anos, mais de 170 pessoas – além de movimentos sociais – foram alvo de
processos por parte da mineradora na Justiça do Pará e do Maranhão. Pelo menos
57 ações (somadas as criminais e cíveis) foram identificadas de 2013 até
outubro de 2017. Na esfera cível, predominam as ações de interdito proibitório
(25 casos), em que se tenta impedir com antecedência que a EFC seja paralisada,
como ocorre usualmente durante os protestos por mais segurança nas travessias e
no entorno da ferrovia. Ações de reintegração de posse são 17 e outras somam 14
casos. Entre as 57 ações, somente uma liminar inicial foi desfavorável à
companhia. Os casos criminais somam seis.
Nos processos, a Vale argumenta que sua “posse [a
ferrovia] está sendo ameaçada”. Questionada pela Pública, a empresa se
defende: afirma que as interdições, além de caracterizarem crime de perigo de
desastre ferroviário, acarretam impactos não apenas para o escoamento da
produção, mas também nas demais comunidades em virtude da interrupção ou do
atraso do transporte de combustíveis e outras cargas e de passageiros. A
empresa ressaltou que busca entender as motivações das manifestações e tratar
as demandas com diálogo e que rejeita meios arbitrários de reivindicação. Disse
que se utiliza de meios legais necessários para neutralizar e proteger suas
operações, empregados e pessoas envolvidas.
Dona Nicinha, lavradora aposentada, é uma das 12 pessoas
processadas criminalmente pela Vale, na Vila Fufuca, em Alto Alegre do Pindaré
(MA). A razão é um protesto que bloqueou a ferrovia por três dias depois de um
grave acidente em março deste ano. A dona de casa Ediana Santos e seu filho de
1 ano e dois meses foram atingidos pelo trem, que começou a andar quando ela
atravessava a ferrovia com o bebê no colo. Ela teve ferimentos nas pernas e
perdeu dois dedos de uma das mãos. O bebê teve um braço amputado.
Como Ediana explicou à Pública, é comum o trem parar no meio
da comunidade, formando uma barreira que impede a circulação. A falta de
passarela nas proximidades, reivindicada desde 2010, faz com que as pessoas
sejam obrigadas a passar por baixo do engate do trem, no vão entre a composição
e os trilhos.
Tanto Nicinha quanto os outros acusados de paralisar a EFC
na Vila Fufuca negam ter liderado a manifestação. A Vale não informa como
identificou os 12 processados como líderes do protesto que reuniu mais de uma
centena de pessoas. No mês passado, uma passarela a 60 metros do local do
acidente, no Km 264, começou a ser construída.
A primeira audiência está marcada para dezembro no Fórum da
cidade vizinha, Santa Luzia.
Também em Alto do Pindaré, na comunidade de Auzilândia, a 30
km do centro, um protesto paralisou um acesso à ferrovia em junho do ano
passado. Os moradores da maior comunidade rural na área de influência direta da
EFC protestavam contra o excesso de poeira, agravado por obras de duplicação da
ferrovia.
João Raimundo Moreno da Silva, conhecido como João de
Mariazinha, foi o único morador processado criminalmente, acusado de liderar a
interdição. Mas a juíza não deu andamento à queixa-crime, pois entendeu que a
Vale não conseguiu especificar qual teria sido a conduta dele.
Em julho, a Vale ingressou com ação de proibição contra os
“Moradores do Povoado Auzilândia”. Na liminar, afirmou que os
moradores interditaram as vias de acesso à obra de expansão da ferrovia e
buscava se prevenir de outras interdições.
De 2010 para cá, foram registradas 39 mortes por
atropelamentos ao longo da ferrovia. Em 2015, sete – o recorde. Mas este ano já
se igualou ao de 2015. Entre os mortos está Otávio, de 1 ano e três meses,
filho da lavradora Leidiane de Oliveira Conceição, que mora na comunidade rural
Flor do Dia, em Alto Alegre do Pindaré.
Em 2012, Otávio engatinhou sem ser visto até a ferrovia, que
fica a 40 metros de sua casa, e foi atropelado. A família entrou na Justiça no
mesmo ano com pedido de indenização. Em sua contestação, a Vale alega que a
“culpa foi exclusiva da vítima”, já que os “responsáveis pelo
menor não tiveram a cautela e zelo necessário para impedir que a criança
brincasse na linha férrea”. “É um trauma muito grande, e a empresa
ainda diz que eu sou culpada, mas tenho cercas ao redor da minha casa”. A
mãe acusa a empresa de não criar proteção aos trens. O caso ainda não foi
julgado.
Em 2016, o MPF ajuizou uma ação civil pública pedindo a
execução de medidas de segurança e fiscalização por parte da companhia e da
ANTT, agência reguladora do setor, que é responsável pela fiscalização da EFC.
Uma liminar judicial determinou que a ANTT realizasse vistorias técnicas em
todas as localidades atravessadas pela EFC no Maranhão. O trabalho envolveu 81
passagens entre o município de São Pedro da Água Branca (MA) e São Luís do
Maranhão – a maioria delas localizada na zona rural. O laudo final apontou
ocorrência de acidentes em 23 passagens de nível.
A ANTT apontou vários problemas, como ausência de
sinalização horizontal e falta de asfaltamento nas vias de acesso às passagens.
A Vale foi notificada e firmou compromisso de corrigi-los.
Ao ser construída, nos anos 80, várias cidades já existiam
próximas ao seu trajeto da EFC; outras, porém, se instalaram nos anos seguintes
às margens da estrada.
A mineradora diz que é comprometida com a redução do número
de ocorrências de incidentes ao longo da ferrovia e que mantém uma série de
iniciativas para mitigar os eventuais impactos de sua operação, com equipes
dedicadas à gestão, monitoramento, acompanhamento e prevenção de incidentes. E
que faz um intenso trabalho para prevenir ocorrências, buscando conscientizar
as comunidades próximas da linha férrea para que haja uma convivência segura
com a operação ferroviária.
Lembrou que é fiscalizada pela ANTT, que observa fatores de
segurança, sinalização de passagens em nível, conservação da ferrovia, entre
outros pontos verificados pelo órgão regulador federal. Mas, observou que, como
concessionária de um serviço público essencial, de interesse nacional,
“não pode sofrer interrupções motivadas por interdições, manifestações,
danos etc.”
A Vale destacou que a faixa de segurança da EFC visa
assegurar as operações ferroviárias, evitando incidentes nas áreas próximas aos
seus trilhos. Disse que informa as comunidades da existência da faixa e que
orienta todos a não fazer edificações nessa área, por meio de ações de
conscientização da população existente nas proximidades.
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