“Correndo
vai pela terra/ vai pela serra/ vai pelo mar”
Ferreira
Gullar
POD NOS TRILHOS
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A nossa
cultura está impregnada do simbolismo das estradas de ferro. Para ficar apenas
na música, Villa-Lobos legou-nos o belíssimo Trenzinho do Caipira – a toccata
da Bachiana n.º 2 –, que ganhou letra de Ferreira Gullar. Milton Nascimento e
Lô Borges compuseram inesquecíveis canções com a temática.
Essa
fascinação, porém, contrasta com a pouca importância histórica dada pelo Brasil
ao transporte ferroviário. Somos um país continental que escoa sua produção
preferencialmente pelas rodovias. Trata-se de uma distorção que há muito nos
traz custos conhecidos. E riscos até há pouco insuspeitados.
Essa grave
deficiência é o resultado de erros e omissões que se prolongaram por várias
gerações. Temos a sétima economia do mundo, mas estamos na 88.ª posição no ranking
global ferroviário, segundo o Fórum Econômico Mundial.
De fato, o
Brasil relegou o transporte ferroviário a um papel secundário. Circunstâncias
recentes novamente chamaram a atenção dos brasileiros para esse erro histórico.
Está mais claro do que nunca que é preciso expandir e modernizar o nosso parque
ferroviário. Para tanto temos de elaborar previamente alternativas viáveis – do
ponto de vista técnico e econômico – que promovam ganhos de eficiência na rede
já existente e sua expansão.
Construir e
modernizar ferrovias demanda investimentos vultosos. Dada a situação de
recorrente penúria fiscal, isso significa que o grosso dos recursos para esse
programa deve necessariamente vir do setor privado.
É necessário
compreender por que o atual modelo de concessões adotado no Brasil segura a
aceleração de investimentos privados em alguns setores. No caso dos trens, esse
modelo foi importante nos anos 1990, pois eliminou uma grande fonte de déficits
fiscais – os enormes prejuízos da antiga Rede Ferroviária Federal –, reduziu
acidentes e aumentou a produtividade do transporte de cargas.
Tal modelo
prevê longos períodos de concessão à iniciativa privada, findos os quais todo o
patrimônio envolvido na concessão deve ser revertido ao Estado. O problema é
que a partir de certo momento o investidor não tem incentivo para continuar
investindo, visto que o prazo de retorno desses aportes seria maior que o
período restante da concessão. O resultado prático desse marco jurídico foi o
abandono de cerca um terço da rede, mais de 8 mil km de ferrovias.
Instrumentos
de regulação já aplicados em outros setores de infraestrutura deveriam ser
aditados para o modal ferroviário. Hoje 70% da carga brasileira escoa por
portos privados outorgados por autorização, modalidade pela qual o investidor,
com a anuência do poder público, constrói e opera as instalações por sua conta
e risco. O regime de competição da telefonia móvel – também mediante
autorização – superou as expectativas mais otimistas. Em contraste, 100% das
ferrovias em operação são outorgadas por concessão, modalidade que exige
investimento estatal antes da transferência ao particular e desincentiva o
investimento à medida que se aproxima o fim do contrato.
É necessário
mudar o esquema de regulação aplicado ao setor ferroviário de cargas. Quem
quiser investir e construir ferrovias poderá fazê-lo por sua conta e risco,
mediante autorização, sem necessidade de dinheiro público.
Entre 2006 e
2016 o mercado ferroviário de cargas brasileiro investiu cerca de R$ 45
bilhões, três vezes mais que a União. Obviamente, tais investimentos foram
feitos porque os atuais concessionários previram retorno financeiro à altura.
Quantos outros não construiriam as próprias linhas se não precisassem
restituí-las ao Estado?
Os Estados
Unidos adotaram com muito sucesso a alternativa da ferrovia sem necessidade de
reversão de ativos e têm hoje mais de 200 mil km de trilhos, que competem com
outros modos de transporte. Desde 1980, quando foi aprovado o Staggers Rail
Act, que reduziu a intervenção estatal no setor, o preço do frete ferroviário
americano caiu cerca de 50%, enquanto o volume de cargas e a produtividade
cresceram 100% e 150%.
Somente em
2015 o setor ferroviário de cargas nos EUA – integralmente privado – investiu
US$ 27 bilhões. Em 2014 foi responsável por US$ 274 bilhões em atividade
econômica, US$ 33 bilhões em pagamento de tributos e 1,5 milhão de empregos
diretos e indiretos. Esse desempenho foi alcançado na competição com uma malha
rodoviária de 4,2 milhões de quilômetros pavimentados. Este é o ponto central:
a regulação do transporte por trem não deve ser tão estrita, na medida em que a
competição rodoviária – e de outros modais – impõe limites aos preços dos
fretes ferroviários.
Outro
aspecto dessa nova equação, aqui proposta, é o da valorização imobiliária.
Devem-se introduzir mecanismos de cooperação entre os proprietários de imóveis
vizinhos aos futuros empreendimentos ferroviários a fim de permitir a justa
apropriação dos benefícios gerados pelos novos ramais aos investidores. Isso reduz
o custo dos investimentos sobre os fretes e ajuda no florescimento de uma
urbanização mais racional.
O mesmo vale
para o transporte de passageiros. As cidades sustentáveis do futuro deverão ser
densas e sua mobilidade será baseada em transporte de alta capacidade – metrô e
trem. A legislação deve permitir maior integração entre o poder público
municipal e as administrações ferroviárias, com o objetivo de mitigar conflitos
e maximizar o investimento, como ocorreu em Londres, Nova York, Miami e Tóquio,
que têm tido grande sucesso no investimento privado em suas redes
metroferroviárias.
O Estado
exerce papel fundamental na economia, mas não pode atuar em todas as posições.
Deve garantir os direitos dos usuários e coibir práticas anticoncorrenciais.
Criar um novo arcabouço regulatório amigável para o investimento privado em
ferrovias nos ajudará a retomar os trilhos do desenvolvimento econômico.
– Fonte: https://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,retomar-os-trilhos-do-desenvolvimento,70002349662
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