Estações ferroviárias abandonadas são ocupadas ilegalmente no interior

Do prédio erguido em 1899 e de sólidas paredes, a aposentada paraibana Helena Maria da Conceição, 79, só se queixa de nunca ter conseguido trocar o telhado desde que se mudou para o imóvel, há 28 anos.

A antiga estação ferroviária Oriçanga, onde vive, em Estiva Gerbi, era um lugar inóspito quando decidiu se mudar para lá com o marido e três filhos após ter passado fome em seu estado de origem.

A ocupação, ilegal, é só uma entre as mais de uma dezena encontradas em estações visitadas pela Folha no interior paulista. A reportagem percorreu 2.000 quilômetros de estradas, parte deles em vias de terra, em busca de estações “perdidas” por descaso, ou em locais hoje de difícil acesso, que pertenceram às companhias Paulista, Mogiana, Sorocabana, Araraquara e São Paulo-Minas, que originaram a Fepasa (Ferrovia Paulista S.A.), em 1971.

O cenário geral é de abandono e depredação. Houve casos em que a reportagem percorreu 15 quilômetros em estradas de terra para chegar às estações, às vezes até sem energia elétrica, mas mesmo assim alvo de invasões e de depreciação do patrimônio público.

Movimentos sem-terra invadiram o entorno de duas das 16 estações -embora não habitem os prédios-, enquanto outras 30 famílias moram em 8 estações, algumas autênticos cortiços. A Folha encontrou ainda 4 locais abandonados e 2 fechados. Sete das estações têm trilhos, ainda que não estejam em uso.

Helena, claro, não tem documentação da área em Estiva, mas disse não temer, já que o ex-patrão do marido fez uma “barganha com a Fepasa”. “Disseram que eu poderia ficar tranquila, que ninguém vai precisar fazer nada com a estação”, afirma.

Perto dali, e a 10 quilômetros da rodovia SP-340, a estação Mato Seco, em Mogi Guaçu, é dividida por três famílias, que diariamente veem até seis trens de carga passarem por ela.

Já a estação de Pradópolis, a 10 quilômetros do centro, vive um processo de ocupação ilegal no entorno que já atraiu cerca de 100 famílias, que pagam até R$ 90 mil por um lote.

A estação de 117 anos e que pertenceu à Paulista é ocupada por três famílias, uma delas a de Maria Aparecida da Silva, 45, que mora no local há dez anos. “Paguei R$ 16 mil, no boca a boca. A garantia é a minha palavra. Hoje vale R$ 80 mil, mas não vendo.”

Situação semelhante vive a estação César Neto, em Botucatu, da antiga malha da Sorocabana, invadida por 15 famílias. “Ninguém tem posse”, disse Douglas Luís Magalhães, que mora com a mulher há três anos no local.

Uma antiga estação da Estrada de Ferro São Paulo-Minas fica tão distante da zona urbana de Altinópolis que não tem nem energia elétrica perto. Mesmo assim, a Águas Virtuosas foi invadida e a família de Fabricio Cesar Furtado vive no local há 18 anos, graças a um gerador que funciona à noite.

Isso não impediu que ele estabelecesse uma espécie de condomínio na vila ferroviária que existia, ao ceder casas a amigos. “Quando chegamos, era tudo mato. Não é meu, mas cuido como se fosse.”

Exceto em um local, invasores disseram que nunca foram procurados por órgãos de governo para questionar o uso do espaço. A exceção é Guatapará, onde a família que mora no local disse pagar aluguel à União e que pedirá usucapião do imóvel.

Imbroglios administrativos, aliás, são apontados por especialistas e pesquisadores como responsáveis pela ocupação dos prédios.

Um exemplo é a estação Capeva, em Serrana, que pertenceu à São Paulo-Minas. No fim dos anos 60, em crise, passou a ser gerida pela Mogiana. Em 1971, ambas, ao lado de outras três companhias, originaram a Fepasa.

Nos anos 90, o ex-governador Mario Covas (1930-2001) fez acordo com a União para transferir a Fepasa para a RFFSA (Rede Ferroviária Federal). Esta, por sua vez, teve as malhas concedidas à iniciativa privada, cujas empresas também sofreram mudanças societárias desde então.

Outra dificuldade, segundo o setor, é que a desestatização foi feita naquela década sem uma agência reguladora. A ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) só surgiu em 2001, o que propiciou um vazio em que os problemas não foram resolvidos e se avolumaram.

A Capeva abriga há 20 anos o ex-ferroviário Sebastião Paulino Caetano, 73, que atuou 32 anos na São Paulo-Minas e na Fepasa. “Um amigo me disse que aqui estava sem ninguém. Vou pedir usucapião.”

Para Helio Gazetta Filho, diretor administrativo da ABPF (associação de preservação), municípios também não tomam iniciativa para resolver o problema e o patrimônio se deteriora.

Já o pesquisador ferroviário Ralph Mennucci Giesbrecht, autor de três livros sobre o tema e que estuda o assunto há mais de 20 anos, disse que o problema ocorre porque nenhum órgão quer cuidar das estações. “Por outro lado, não fossem esses invasores talvez não existiria mais nada nesses locais.”

Segundo ele, o problema é mais grave nas desativadas nos anos 1990, como Conchas, ex-Sorocabana, onde vivem quatro famílias. “As antigas muitas vezes foram negociadas com pessoas físicas ou jurídicas nos anos 60 e 70, mas as que fecharam por último passaram por um processo mais atribulado.”

As linhas de passageiros “”que davam vida às estações”” não se mostravam rentáveis à época e ficaram fora das concessões. “As concessionárias pagam ao governo federal outorga e taxa de arrendamento, calculadas sobre os bens arrendados. Só faz sentido arrendar o que vai usar, o que não era o caso dessas estações. Já locomotivas e vagões foram arrendados”, disse Fernando Simões Paes, diretor-executivo da ANTF (associação dos transportadores ferroviários).

Enquanto há estações invadidas, outras não têm uso algum no interior. Silveira do Val (Ribeirão Preto), Santa Ernestina (Santa Ernestina), Matão (Matão) e Remédios (Anhembi) estão abandonadas e sofreram danos. Remédios não tem mais telhado e a de Ribeirão caminha para o mesmo destino.

Já Piramboia (Anhembi) e a estação de Serra Azul estão fechadas, mas sem danos.

A RFFSA foi extinta em 2007 por meio de uma lei e, desde então, segundo sua inventariança, os imóveis ferroviários foram divididos em dois tipos. Os operacionais, arrendados às concessionárias, têm como dono o Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes).

Já os não-operacionais “”não arrendados””, foram transferidos para a União, via SPU (Secretaria de Patrimônio da União), vinculada ao Ministério do Planejamento.

Estações visitadas pela Folha enfrentam as mais variadas situações administrativas e algumas passam por imbróglio burocrático que se arrasta há mais de duas décadas.

Mato Seco (Mogi Guaçu), Oriçanga (Estiva Gerbi), Juquiratiba (Conchas), Capeva (Serrana) e Matão, por exemplo, ainda estão em processo de incorporação pela União, segundo a SPU. Só a última não está invadida.

Outras duas “”Coronel Pereira Lima (Sales Oliveira) e César Neto (Botucatu)””, ocupadas, aguardam transferência para a SPU da inventariança da RFFSA.

Já Águas Virtuosas (Altinópolis) e Pradópolis integram área operacional do Dnit. Passagem (Pitangueiras) e Guatapará, por fim, fazem parte da chamada reserva técnica ferroviária por estarem dentro da faixa de domínio da ferrovia.

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/03/estacoes-ferroviarias-abandonadas-sao-ocupadas-ilegalmente-no-interior.shtml

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*