A cena aconteceu numa segunda-feira, às 9h10m, na estação Triagem do ramal Belford Roxo, operado pela SuperVia. Um traficante de bermuda preta, camiseta e chinelo embarcou em um trem com uma pistola na cintura, um radiotransmissor preso ao cinto e uma mochila nas costas. No último vagão, passageiros, entre eles crianças, seguiam indiferentes rumo aos seus destinos, acostumados à presença de um bandido dentro da composição. O homem permaneceu em pé até chegar à próxima estação, Jacarezinho, onde desembarcou tranquilamente.
Uma equipe do GLOBO percorreu o trecho durante uma semana. E a presença ostensiva do tráfico foi apenas um dos sinais flagrantes da naturalização da violência que acompanha as viagens. Próximo à estação do Jacarezinho, às margens da linha do trem, existe um esquema de compra, venda e consumo de drogas que tem até seguranças. E, ao longo do ramal, barracas com papelotes de cocaína e trouxinhas de maconha se multiplicam.
Homens armados dão cobertura a traficantes que trabalham embalando a droga. Ainda no Jacarezinho, usuários consomem crack e vagam sem direção. Tudo isso acontece em um terreno que pertence à SuperVia.
Depois do Jacarezinho, no sentido Belford Roxo, a próxima parada é Del Castilho. Uma boca de fumo funciona colada à estação. Por conta disso, uma cracolândia se formou à beira da linha do trem. Comércio de drogas e pontos de consumo também são uma realidade na Vila Rosali, a primeira depois da Pavuna. Nos muros das duas estações, pichações confirmam que o tráfico é forte no sistema ferroviário. Uma delas diz: “Proibido o uso de drogas na plataforma”.
Tráfico afasta fiscais
O ramal Belford Roxo tem 19 estações, a partir da Central do Brasil. Contando no relógio, sem atrasos, são 55 minutos para ir de um extremo ao outro. Diariamente, 22 mil pessoas pagam R$ 4,60 para embarcar em um dos dois tipos de trens que circulam ali, o expresso e o parador.
Na composição que para em cada estação viaja o perigo, literalmente. Traficantes usam os trens para percorrer as distâncias entre as bocas de fumo. Eles costumam pegar o último vagão do parador, onde também viajam usuários. Dentro dele, ouvidos mais atentos às conversas dos bandidos escutam lamentos sobre colegas “que rodaram na mão da polícia”. Também não faltam diálogos sobre roubos de cargas.
A situação crítica às margens da linha férrea é tamanha que, no início deste mês, fiscais da agência reguladora de transportes, a Agetransp, que iniciaram vistorias para verificar a acessibilidade nos transportes públicos do Rio, deixaram de ir às estações Jacarezinho e Del Castilho por causa da insegurança.
Por meio de nota, a SuperVia informou que, desde o início de janeiro, já registrou 19 interrupções temporárias na circulação de trens no ramal Belford Roxo em razão de tiroteios nas imediações. São cinco a mais que em todo o ano passado. Segundo a concessionária, isso totalizou quase 30 horas de paralisações no sistema. A maioria delas ocorreu na estação Jacarezinho (nove), seguida por Costa Barros (quatro) e Barros Filho (três).
Domínio do tráfico no final dos anos 90
O tráfico de drogas também corria solto na malha ferroviária do Rio nos anos de 1990. Uma série de reportagens assinada por Antônio Werneck, da Editoria Rio, mostrou, em 1997, que das 90 estações do sistema da antiga Companhia Fluminense de Trens Urbanos (Flumitrens), com 274 quilômetros de extensão no Grande Rio, um terço havia sido tomada por bandidos. A primeira foi publicada no dia 9 de novembro daquele ano com o título “O expresso do pó”.
Os traficantes usavam trens para se deslocar de uma favela para outra, portando fuzis e pistolas automáticas e transportando drogas. Dentro dos vagões, quase sempre sem luz e com portas que nunca fechavam, o consumo de cocaína e maconha acontecia livremente, constrangendo passageiros – sendo a grande maioria na época, ou 93%, de trabalhadores, operários, comerciários, empregadas domésticas e donas de casa.
A série mostrou que numa das estações, a de Vieira Fazenda, na Favela do Jacarezinho, no ramal de Belford Roxo, traficantes haviam assumido o controle absoluto. Ali, sem a presença do poder público, roletas foram arrancadas, guardas ferroviários expulsos, bilheteiros mandados para casa e a plataforma transformada numa grande feira livre de drogas.
Uma das consequências das reportagens foi a criação do Batalhão de Polícia Ferroviária da Polícia Militar, com 735 homens, que passou a patrulhar as estações e os vagões, após decreto do governador Marcello Alencar.
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