Manter as luzes acesas, a água correndo e as pessoas se movimentando

Foto: Zanone Fraissat / Folhapress

Como um dos países do mundo mais expostos à pandemia de Covid-19, o Brasil fechou partes significativas de sua economia, a fim de reduzir a curva de contágio. Entre todas as empresas que serão impactadas pelo choque econômico de oferta e demanda, as concessionárias de água, energia e transporte urbano merecem atenção especial por seu papel fundamental e características específicas.

De fato, essas empresas (i) prestam serviços essenciais à população em geral, e particularmente cruciais para os mais vulneráveis; (ii) operam em ambiente muito regulado, sem liberdade para estabelecer tarifas ou selecionar sua base de clientes; (iii) estão sob estresse financeiro devido à interrupção da atividade econômica e das cadeias de suprimentos resultantes das políticas de contenção em vigor; e (iv) não possuem concorrentes imediatos (públicos ou privados) para substituí-las em caso de colapso. Alguns exemplos podem ajudar a explicar essa situação.

As empresas estatais de serviços de água e saneamento prestam serviços de fornecimento de água a 57 milhões de famílias e serviços de saneamento a mais de 32 milhões de domicílios no Brasil. Os riscos financeiros enfrentados por essas empresas estão aumentando rapidamente por conta da Covid-19, mesmo que sua exposição financeira varie entre os estados brasileiros.

As estimativas de perdas de receitas e riscos financeiros para todos os estados brasileiros vão de US$ 100 milhões a US$ 125 milhões por ano, na ausência de respostas à Covid-19. Os estados com empresas mais expostas são Amazonas, Santa Catarina, Maranhão, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, São Paulo e Piauí. Tratar dos riscos financeiros, orçamentários e de perdas de receita dessas concessionárias é essencial para evitar seu colapso financeiro, e deve ter como objetivo manter e restaurar as operações e evitar os riscos de falência financeira a médio prazo.

Os serviços de energia também são essenciais para proteger a saúde humana e manter hospitais funcionando durante a pandemia da Covid-19, além de assegurar a retomada econômica. Mas o choque da demanda proveniente da quarentena resultou em queda no consumo de energia de até 20% dos usuários comerciais e industriais mais lucrativos.

O impacto no desempenho financeiro e operacional das concessionárias de distribuição de energia é agravado pelo aumento no risco de inadimplência e pressões sobre a cobrança de receitas, em parte impulsionada pela medida que proíbe o desligamento dos serviços por não pagamento. Os aumentos de tarifas foram suspensos, exacerbando ainda mais as restrições de liquidez dos distribuidores e afetando sua capacidade de honrar contratos de longo prazo com geradores para a compra de energia.

O impacto geral no setor está estimado em R$ 22 bilhões, afetando mais seriamente as concessionárias que operam nas regiões mais pobres do Norte e Nordeste, que já estavam sofrendo com perdas comerciais significativas e baixa confiabilidade do sistema. Além das ambiciosas medidas políticas já implementadas, é necessário priorizar a eficiência energética e dos combustíveis, e adotar programas financeiros que acelerem o avanço em direção ao programa Luz Para Todos e à transição para a energia limpa.

O setor de transporte público urbano também é fortemente afetado, com diferentes atores impactados de modo distinto. Três categorias de atores foram identificadas: (i) grandes operadoras públicas de transporte público (por exemplo: Metrô, CPTM em São Paulo, CBTU em várias cidades, Trensurb em Porto Alegre), (ii) grandes operadoras privadas, principalmente no segmento ferroviário, apoiadas por grandes empresas internacionais (por exemplo: CCR em Salvador ou SP, Mitsui no Rio), e (iii) e operadoras de ônibus particulares, operando em grandes e pequenas cidades.

Os dados do Moovit sugerem declínios no número de passageiros que variam de 50% a 70% nas áreas metropolitanas do Brasil. A Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF) registrou queda de 63% no número de passageiros em março, em comparação ao ano passado. Isso representa um déficit de receita de US$ 130 milhões apenas naquele mês.

Supondo que os serviços e a demanda recomecem em meados de junho, o déficit de receita é estimado em US$ 700 milhões apenas para o setor ferroviário urbano, US$ 400 milhões para operadores privados e US$ 300 milhões para os públicos. Para o setor de ônibus, as perdas são estimadas em US$ 200 milhões por dia. Neste momento, não há elementos disponíveis sobre a resiliência financeira de grandes empresas, nem sobre sua capacidade de absorver o choque, apesar de operarem em um ambiente fortemente competitivo que não deixa muito espaço para grandes margens.

O Brasil possui cerca de 34.000 empresas de ônibus (serviços urbanos e interurbanos). Elas empregam cerca de 700.000 pessoas e são responsáveis por 86% de todo o transporte público no Brasil, ou seja, cerca de 46 milhões de viagens por dia em horários normais. Um colapso dessas empresas teria efeitos imediatos nos níveis de congestionamento urbano, bem como na capacidade de muitos trabalhadores de chegarem em seus locais de trabalho, sem mencionar a acessibilidade de uma solução alternativa.

Será necessário o apoio do setor público para garantir que as empresas afetadas nesses setores críticos sobrevivam ao isolamento, e para evitar interrupções importantes no cotidiano de muitos cidadãos, bem como responsabilidades contingentes pelas finanças dos governos subnacionais que já se encontram debilitadas.

Um exemplo seria fornecer liquidez a operadores de serviços de transporte público ou empresas distribuidoras de água e eletricidade, por meio de linhas de crédito facilitadas por governos nacionais ou estaduais. Ou um mecanismo de garantia para alavancar empréstimos comerciais.

Importante observar, no entanto, que o momento pode ser também uma oportunidade para introduzir melhorias nos setores, ao invés de apenas retornar ao status quo anterior. Essas melhorias devem se concentrar em investimentos mais sustentáveis e práticas gerenciais mais saudáveis, como o transporte ecológico (por exemplo, ônibus elétricos) ou a exigência de tecnologia avançada de medição para distribuidores de eletricidade e água como pré-requisito para acessar apoio financeiro.

Esta coluna foi escrita em colaboração com Renato Nardello, coordenador do Programa de Desenvolvimento Sustentável e Infraestrutura do Banco Mundial no Brasil.

Rafael Muñoz Coordenador da área econômica do Banco Mundial para o Brasil, já trabalhou para a instituição na Ásia e na África.

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/rafael-munoz/2020/06/manter-as-luzes-acesas-a-agua-correndo-e-as-pessoas-se-movimentando.shtml

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