A “mobilidade pró-pobre”

Assisti a um debate de que Vitor participou, no Summit Estadão de Mobilidade, na semana passada. Num painel sobre redução da desigualdade na cidade, ele enfatizou as diferenças gritantes entre pessoas de classes sociais diferentes na mobilidade. Procurei-o depois e tive o prazer de ouvi-lo falar sobre as experiências concretas de quem anda tanto por lugares aprazíveis como por bairros de difícil acesso e perigosos do Rio e de cidades vizinhas, e sobre possíveis soluções.

Vitor, que mora no Rio de Janeiro, se define como um intelectual híbrido, que faz a ponte entre a academia e a periferia. Ele é cientista social formado pela FGV, faz mestrado em gestão pública e é presidente do Instituto do Guetto (Gestão Urbana de Empreendedorismo, Trabalho e Tecnologia Organizada), fundada em 2019, voltada para a comunidade negra, em 2019.

Mobilidade pró-pobre 

O termo que ele cunhou trata de olhar para a mobilidade a partir de quem mora em locais de difícil acesso, longe de empregos, longe de equipamentos culturais e com pouco dinheiro. 

Para essas pessoas, interessa muito o tempo de duração das viagens, claro, mas também as condições em que são feitos os trajetos, desde a previsibilidade até a qualidade.

Tempo da viagem

Pessoas que moram longe dos centros das grandes cidades gastam horas dentro de trens e ônibus. No Rio de Janeiro, ele exemplifica com os problemas do Metrô Rio e Supervia (a concessionária responsável pela linha de BRT que serve a zona oeste, construída no período que antecedeu a copa do mundo pelo ex-prefeito Eduardo Paes e que ofereceu uma conexão com as periferias da cidade), que, por causa de falta de manutenção, regularmente atrasam e causam demoras que aumentam o tempo do trajeto.

Um trajeto na prática

Para entender os problemas da logística a que se submete alguém que mora na região metropolitana, pedi que ele descrevesse um trajeto regular que faz normalmente. Ele escolheu um percurso entre Nova Iguaçu e o bairro de Botafogo:

A pé: 12 minutos a partir da casa da mãe até um lugar onde estacionam várias vans

Van: 40 minutos até o centro de Nova Iguaçu

Trem: 1h20 até a estação Central do Brasil, no centro do Rio

Metrô: 20 minutos até a estação Flamengo

Pé: 7 minutos até a FGV, onde estuda

Total: 2hs39 minutos.  4 meios de transporte.

 Tempo de espera

Pessoas pobres precisam de previsibilidade. Segundo Vitor, o patrão não está disposto a aceitar desculpas pelos atrasos nos transportes. Se até no metrô as composições atrasam, nos ônibus a previsibilidade é menor ainda. O resultado é que as pessoas que não podem chegar atrasados acabam saindo de casa mais cedo para não correr o risco.

Qualidade

A experiência de  esperar numa fila e entrar num ônibus ou trem lotado é reveladora da realidade dos transportes nas grandes cidades. Não é justo pagar tarifa de quase 5 reais para ir espremido, amassado, com ar condicionado que não funciona ou então com risco de se contaminar.

A microbilidade nas favelas

Nenhum ônibus entra na favela. Para sair das estações de ônibus e chegar em casa, a pessoa vai a pé, aplicativo, van ou kombi, mas muitas vezes alguns desses não entram nas ruas estreitas, nas ladeiras ou em lugares mais perigosos. O que resolve mesmo são os mototaxis. O problema é que geram mais um custo para quem já pagou pelo transporte.

Mototaxistas cobram de 2 a 4 reais por trajeto, quase uma passagem inteira a mais para garantir acesso em lugares que às vezes não são nem tão distantes, mas que representam dificuldade de acesso, degraus, subida e falta de iluminação. Quem tem dificuldade de locomoção, que leva crianças ou carrega compras e objetos, sofre duplamente.

Finais de semana

O raciocínio do olhar da mobilidade ‘pró-pobre’ serve para olhar para questões que passam desapercebidas do poder público. Um exemplo: o fim de semana.

Segundo Vitor, mesmo mal, o transporte funciona nos dias de semana porque as pessoas são necessárias nos seus empregos. Por exemplo, o padeiro e a empregada doméstica encontram ônibus nos dias de semana porque a lógica do transporte garante que ele chegue a tempo de fazer o pão e ela a tempo de servir o café da manhã para uma casa de família de classe média.

Aos finais de semana, porém, os trabalhadores que moram em  periferias se deparam com a redução drástica do número de ônibus e até com suspensão de linhas. As pessoas de periferia também querem ir ao centro, ao Teatro Municipal (que oferecia espetáculos a 1 real aos domingos), à praia, ao  zoológico, à Quinta da Boa Vista. Ao pensar no tempo de espera e principalmente na logística e no horário da volta, as pessoas simplesmente desistem do programa. Pobre não quer só comida, quer comida, diversão e arte!, diz, parafraseando os Titãs.

Andar a pé na cidade

Andar a pé pode ser um grande prazer. Mas não para todo mundo, nem em todos os lugares e nem em todos os horários. As dificuldades de quem anda a pé aumentam terrivelmente nas periferias.

Peço ao Vitor para descrever o ambiente dos lugares onde ele anda. O contraste entre o bairro de Botafogo (onde estuda) e Nova Iguaçu (onde mora a mãe) é exemplar:

Em Botafogo, andar é um prazer. As ruas são asfaltadas, há vida na rua, bares com mesas na calçada e oferta de coisas interessantes nas lojas.  Sou cientista social, para mim é um barato ver gente. Em Botafogo, as pessoas parecem até mais felizes.

Em Nova Iguaçu, no lugar de lojas interessantes, uma lan-house com camelôs na frente. As vitrines bonitas escasseiam e a loja de produtos orgânicos dá lugar às barraquinhas que vendem biscoito e doces baratos, transbordando de sódio e açúcar. Calçadas quebradas e trânsito feroz aumentam a privação de quem se aventura por ali. Sem falar na violência de regiões dominadas pelo tráfico ou pelas milícias, o que já fez Vitor ter que voltar atrás para evitar um tiroteio.

Smart Cities

Vitor acredita que é preciso pressionar o poder público para melhorar a qualidade do transporte, mas pondera que não dá para ficar esperando as iniciativas. Assim, fundou o Guetto, uma ONG que procura desenvolver ferramentas de tecnologia com o olhar de pessoas mais pobres. Segundo ele, os desenvolvedores de software de transporte e as empresas de tecnologia não têm o olhar para os pobres e muitas vezes debatem como melhorar a vida de alguém  cuja vida já é boa.

Aprendi que os jovens de periferias do Rio de Janeiro se referem aos jovens de classe média como os ‘boys’. Os ‘boys’, portanto, mesmo bem intencionados, não têm conhecimento da experiência de quem tem que se aventurar pelo transporte da cidade a partir das periferias e das favelas.

Um exemplo: aplicativos existentes não levam em conta necessidades concretas de quem trabalha. Um aplicativo avisa que vem um ônibus vazio em 15 minutos. O problema é que quem tem emprego prefere pegar o ônibus lotado para não correr o risco de se indispor com a chefia e até perder o emprego.

Você não precisa ser pobre para entender o problema do pobre. Mas deve ser capaz de ouvir quem é pobre.

A frase resume o que governos e empresas talvez devessem ter em mente quando pensam na diversidade. Times diversos conseguem ver mais problemas e conseguem resolvê-los com mais facilidade.

Penso nos políticos, nos gestores públicos e nos conselhos de transporte e urbanismo, aqui de São Paulo, de que participo ou já participei (e tantos outros, educação, saúde, etc). Quanta energia desperdiçada por autoridades públicas (que muitas vezes andam pela cidade com carro blindado e motorista) que não se preocupam em ouvir as questões levantadas por gente que está se movimentando em ônibus, trens, a pé.

Como fazê-los pensar na cidade sob os diferentes pontos de vista? Um bom começo é garantir que haja diversidade em seus times. E ouvi-los

Fonte: https://sao-paulo.estadao.com.br/blogs/caminhadas-urbanas/mobilidade-pro-pobre/

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