O Globo (Opinião) – Nas últimas semanas, o governo federal vem se esforçando para vender à sociedade o projeto de nome Ferrogrão como sendo uma iniciativa sustentável. É uma tentativa evasiva de responder aos questionamentos que a futura ferrovia vem sofrendo, uma estratégia de marketing que não corrige seus problemas estruturais.
Querem pintar de verde um projeto no mínimo cinzento. As ações incluem um artigo assinado pela secretária de Fomento, Planejamento e Parcerias do Ministério da Infraestrutura, Natália Marcassa, e uma reportagem levada ao ar na TV Brasil.
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O artigo afirma que inexiste sobreposição entre o traçado do empreendimento e terras indígenas. Na verdade, existem 48 povos indígenas afetados pelo projeto. O governo, porém, desde o início se esforça para minimizar esse fato.
Uma das estratégias adotadas foi impedir a participação dos povos indígenas e comunidades nas discussões. As audiências públicas inicialmente ocorreram apenas em Belém, Cuiabá e Brasília – cidades localizadas a milhares de quilômetros de onde se pretende implantar o empreendimento. A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) foi compelida a realizar mais três audiências públicas somente após recursos ao Judiciário.
Na sessão de Brasília (12 de dezembro de 2017), depois de viajarem mais de três mil quilômetros, os povos indígenas alertaram para a importância de respeitar a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê consulta livre e informada aos povos durante a fase de concepção do projeto.
Na ocasião, a diretoria da ANTT se comprometeu por escrito a realizar o procedimento da OIT antes do envio do projeto ao TCU. Ato contínuo, ignorou o que havia firmado e enviou o projeto ao tribunal.
Tal fato motivou os 14 procuradores da República do MPF da Região Amazônica, juntamente com os institutos ISA, Iakiô, Atix, Raoni e Kabu, a ingressar no TCU com uma representação solicitando a declaração de ilegalidade e a anulação de todos os atos administrativos proferidos pelo governo sem a oitiva, sob pena de dano irreversível ao maior patrimônio natural da humanidade.
Outro mito difundido pelos canais oficiais é que o traçado aproveita a faixa de domínio da BR-163. Na verdade, seriam mais de 70 quilômetros fora da faixa da rodovia, invadindo unidade de conservação do Parque Nacional do Jamanxim e soterrando rios e riachos, um impacto irreversível nas nascentes da Serra do Cachimbo. Em ofício de 17 de março de 2020, a ANTT foi taxativa em afirmar que sem o traçado passando pelo Jamanxim, o projeto da Ferrogrão é inexecutável.
De maneira inconstitucional, o governo federal se valeu de uma Medida Provisória para alterar os limites do Parque do Jamanxim. Tal ato é objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade no STF. O entendimento pacífico – com precedentes em outros empreendimentos destrutivos na Região Amazônica – é que alterações em parques nacionais não podem ser realizadas por MP, mas por lei ordinária, para que se discuta o ato com a sociedade.
Dois estudos – da UFMG e da Climate Policy Initiative/PUC-Rio – já mostraram o risco do projeto em relação à redução da proteção ambiental e provaram que a área de impacto será muito maior do que a faixa de domínio da ferrovia.
Como se fossem poucos os fatos aqui apresentados, em dezembro veio a público o impensável: está havendo aliciamento de indígenas da região para obter anuência sem cumprir os protocolos de consulta e viabilizar o licenciamento do projeto, induzindo o Ibama a erro.
Por fim, foi divulgada a notícia de que se pretende injetar recursos públicos para viabilizar o projeto. O país precisa saber quem irá se locupletar com isso.
Contamos com a responsabilidade dos servidores dos órgãos de controle, do Judiciário e da própria administração, que certamente não querem ver a credibilidade que resta ao nosso país se esvair como fumaça de queimada na Amazônia. A Ferrogrão é o trem-bala da devastação.
Doto Takak Ire é kayapó e relações-públicas do Instituto Kabu
Fonte: https://oglobo.globo.com/opiniao/o-trem-bala-da-devastacao-24862787
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