Valor Econômico – Antes mesmo de a Vale chegar aos 80 anos, data que se completa hoje, a pergunta sobre qual será o futuro da mineradora tem sido repetida com frequência por investidores, analistas de bancos e outros públicos de interesse. A indagação se justifica pelo porte da empresa, dona da ação mais líquida da B3 no momento e que, no ano passado, gerou US$ 20 bilhões (R$ 108 bilhões) em fluxo livre de caixa, o saldo depois do pagamento de todos os compromissos. A magnitude dos números leva o mercado a questionar o que a Vale quer ser para além de uma “cash cow” [vaca leiteira], uma das dez maiores pagadoras de dividendos do mundo, como mostrou, em abril, o Valor.
A alta administração da Vale vem discutindo o planejamento para 2023-2027. A curto e médio prazos há questões que a empresa precisa resolver, incluindo dificuldades nas operações de minério de ferro e níquel, os dois principais produtos do portfólio junto com o cobre. O mercado cobra que a empresa entregue os resultados. Atingir a capacidade de produção de 400 milhões de toneladas de minério de ferro por ano tornou-se mais difícil depois das restrições no uso de barragens, fruto do problema com Brumadinho, em 2019. Mas a Vale continua a perseguir a meta a “médio prazo”. Este ano deve produzir entre 320 milhões e 335 milhões de toneladas da commodity.
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A mais longo prazo a mineradora debate, no conselho de administração, sobre o que pretende ser quando completar um século daqui a 20 anos – em 2042. Pelas dificuldades de se fazer previsões no Brasil, o que se soma a um mundo cada vez mais incerto, o planejamento funciona como exercício intelectual. Mas que aponta tendências com base na realidade do presente. A Vale quer voltar a crescer, mas pretende fazê-lo de forma diferente do que fez no passado, apoiada em grandes aquisições.
A mineradora quer se valer das vantagens que tem na produção de níquel, cobre e outros metais, e também no minério de ferro, para se posicionar de forma competitiva na transição energética, movimento em que países e empresas buscam implementar medidas para reduzir as emissões de gases poluentes. Embora esteja bem situada, a Vale tem desafios: tem forte dependência de um único cliente, a China, e é menos eficiente na operação, da porta da mina para dentro, do que os australianos, embora seja mais forte na logística.
A eletrificação da economia a partir de fontes mais “limpas” parece hoje inexorável e tem, como consequência, o crescimento de projetos de geração de energia eólica e solar, os quais são intensivos no consumo de cobre. As vendas de carros elétricos, por sua vez, estão em alta e demandam níquel, cobalto e lítio. Há ainda a descarbonização de indústrias tradicionais como de cimento e aço, clientes da Vale. A siderurgia responde por 9% das emissões globais de CO2. A Vale quer estar pronta para atender a todas essas demandas.
As expectativas em relação à companhia também são determinadas pela história recente, marcada por grandes aquisições, nos anos 2000, e pelas maiores tragédias socioambientais do país nos últimos sete anos. No começo do século, a Vale fez uma consolidação no setor no Brasil ao comprar outras empresas produtoras de minério de ferro: Caemi, Ferteco, Samitri e Socoimex. Junto vieram barragens a montante, como as que se romperam em Mariana (2015) e em Brumadinho (2019).
As duas tragédias foram responsáveis por perdas humanas (289 mortes no total) e socioambientais, incluindo, ironicamente, a poluição do rio Doce, berço da companhia, constituída, por decreto do presidente Getúlio Vargas, em 1º de junho de 1942, em Itabira (MG). Mariana e Brumadinho incorporaram à Vale riscos e incertezas que se refletem até hoje na companhia. Um deles se explicita na diferença de valor de mercado da empresa em relação aos concorrentes australianos Rio Tinto e BHP Billiton (ver quadro acima).
Como uma das principais multinacionais brasileiras, a atuação da Vale fora do Brasil também tem um papel relevante na estratégia da companhia. Um passo importante na internacionalização da empresa foi a compra, em 2007, da Inco, produtora de níquel, no Canadá. A operação canadense mostrou-se problemática, mas deixa a mineradora hoje, 16 anos depois da aquisição, em posição vantajosa para fornecer níquel para a indústria de carros elétricos. Em maio, a empresa confirmou ter assinado contrato de longo prazo para fornecer níquel “classe 1” para a Tesla, nos Estados Unidos, a partir do Canadá.
Se o futuro oferece oportunidades de crescimento para a Vale a partir de operações no exterior, no passado alguns movimentos de internacionalização terminaram não dando certo. Estimativas de investidores indicam que entre 2005 e 2016 a mineradora brasileira aplicou US$ 25 bilhões em projetos em Moçambique (carvão), Nova Caledônia (níquel) e Argentina (potássio), investimentos que não foram recuperados. Em abril, a Vale concluiu a venda dos ativos de carvão de Moçambique para a Vulcan Resources, iniciativa que pode ser interpretada como o fim de uma era de grandes projetos e aquisições pela empresa, amparada no “superciclo” das commodities, nos anos 2000, em que os preços do minério de ferro atingiram picos de US$ 200 por tonelada.
O presidente da Vale, Eduardo Bartolomeo, disse ao Valor, que a empresa está preparada para crescer e liderar a indústria de mineração do futuro. Engenheiro de formação, o executivo está no cargo há três anos. Assumiu como CEO logo depois do rompimento da barragem de Brumadinho, e tem mandato até 26 de maio de 2024, com possibilidade de renovação. É considerado por investidores um gestor com experiência em “chão de fábrica”.
Para a Vale, a mineração do futuro será dos que conseguirem dominar determinadas competências e colocar de pé projetos de acordo com as demandas dos públicos de interesse e das políticas ESG, a sigla que designa as agendas ambiental, social e de governança corporativa. A tendência é que seja uma mineração mais baseada em tecnologia. “Em 20 anos, não vemos a presença de seres humanos em nossas minas subterrâneas, que são ambientes hostis [no Canadá]. Gostaríamos de ter minas todas automatizadas”, afirma Luciano Siani Pires, vice-presidente de estratégia e transformação de negócios da Vale.
A partir de hoje, o Valor publica uma série de reportagens sobre a Vale valendo-se da efeméride dos 80 anos para discutir o presente e as perspectivas da companhia, que hoje tem o maior valor de mercado da B3, à frente da Petrobras. Esta primeira parte oferece uma visão geral dos desafios e das oportunidades da empresa. Na próxima semana haverá uma edição dedicada às operações no Pará, na Amazônia, por onde passa o futuro do crescimento da mineradora. E na semana do dia 12 outra edição vai contemplar a situação em Minas Gerais, onde a Vale nasceu. Para fazer a reportagem, o Valor ouviu executivos da empresa e representantes de investidores, da sociedade civil e de governos.
“Estamos com esse movimento de tentar imaginar e conceber o que será essa empresa em 20 anos”, diz Siani. A Vale, afirma, está pronta para voltar a crescer e fazer “coisas novas”. “Mas ao invés de ter um negócio de minério de ferro, nos próximos 20 anos a Vale vai ter um portfólio de negócios associados à descarbonização da siderurgia”, afirma. Nos últimos 20 anos, a mineração foi uma história de urbanização da China e de procura dos chineses por todo tipo de mineral e metal, diz o executivo. Esse roteiro continua, mas a diferença, hoje, é que o mundo se voltou para a transição energética, compara.
No conjunto de soluções para descarbonizar a siderurgia, a Vale aposta na tecnologia tecnored, que permite produzir o chamado ferro-gusa verde, a partir da substituição de carvão metalúrgico por biomassa. Conta também com o briquete verde de minério de ferro, um novo produto, resultado de mais de 20 anos de pesquisa, que pode permitir uma redução de mais de 10% das emissões de gases de efeito estufa na produção de aço. A Vale também não vai se furtar de olhar oportunidades em outras áreas, como o lítio, usado nas baterias dos carros elétricos, e pode até mesmo ter algum papel na reciclagem dessas baterias.
Existem ainda oportunidades de novos empreendimentos. No cobre, por exemplo, a empresa tem perspectivas de desenvolver o projeto de Alemão, no Pará, e de Hu’u, na Indonésia. No minério de ferro, carro-chefe da companhia, há vários projetos em carteira. “A Vale vai olhar para oportunidades no Brasil que tenham sinergia [com as operações atuais] e se relacionem com as competências da empresa. Não vamos fazer loucuras”, diz Siani.
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