Valor Econômico – Em meio ao clamor pela descarbonização para mitigar os efeitos do aquecimento global, o transporte público tem papel importante. Mas em muitas grandes cidades o que se vê são ruas lotadas de carros individuais e perda de usuários nos ônibus, que enfrentam ainda a concorrência dos serviços de transporte por aplicativo.
O desafio de atrair usuários para manter a qualidade do transporte público – e desafogar emissões e avenidas – é emblemático numa capital que inovou repetidas vezes ao estruturar seu sistema viário e hoje luta com desafios dignos de metrópole.
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Curitiba, capital do Paraná, planejou seu adensamento populacional ao longo de avenidas chamadas eixos estruturais, cada uma numa direção, tendo no meio canaletas para ônibus em longos trechos. E reinando em seu vibrante vermelho, zunindo por essas vias exclusivas, o ônibus “expresso”.
Inaugurado em 1974 para andar nas inovadoras canaletas, ele trazia até o layout interno repensado, com mais espaço para usuários em pé. Era o início de um tempo de modernização, tendo à frente o arquiteto e então prefeito Jaime Lerner.
Depois o ônibus curitibano ganhou a “sanfona” no meio e virou articulado, e mais tarde duas, virando o “biarticulado”, até ser empacotado para exportação com a sigla “BRT” (bus rapid transit). Isso mesmo, a invenção curitibana, primeiro copiada em Bogotá, na Colômbia, sob a forma da rede TransMilênio, depois foi adotada em mais de 80 países.
Hoje Curitiba possui 81 quilômetros de canaletas em 6 eixos que cortam a cidade, e outros 10 quilômetros estão em construção. Para embarcar, os passageiros esperam nas estações-tubo, dignas de revistas internacionais de design desde a inauguração em 1991. O ônibus “Ligeirinho” também utiliza esse tipo de parada, circulando pelas vias normais, em linhas complementares às expressas e interbairros.
As estações-tubo, porém, levantam críticas quanto ao conforto de usuários e cobradores. No frio, vira um túnel de vento; no calor, uma estufa. Para responder a isso, a prefeitura está em processo de modernização – para começar, 12 estações da linha direta mais movimentada (Inter 2) serão equipadas com conforto térmico e geração de energia alternativa por painéis solares.
Outra inovação trazida pelo transporte público curitibano foi a integração de linhas entre os bairros, com a criação de terminais e estações-tubo que permitem trocar de ônibus sem pagar outra passagem. Recentemente, surgiu ainda a integração temporal: em algumas linhas, o usuário pode usar o mesmo cartão novamente sem descontar nova passagem.
Tudo fluía bem até as sucessivas crises econômicas, a concorrência com outros modais e o aumento da motorização da população derrubarem o número de usuários, situação que foi agravada pela pandemia.
Para se ter uma ideia, o volume, que foi de 203,9 milhões de pessoas em 2019, caiu para 156,6 milhões em 2023. A cidade tem um sistema inovador, mas faltam entusiastas para embarcar nele. O fato de Curitiba ser a capital com maior índice de motorização do país só complica a situação, somado à tarifa de R$ 6.
Tanta mudança social exige uma gestão pública que pense continuamente no futuro, e a pergunta é: para onde vamos? “O Plano Diretor de Curitiba, em suas várias versões, tem priorizado o uso do transporte coletivo, demonstrando o compromisso da cidade com a sustentabilidade, na medida em que prioriza um modal de transporte potencializador dos benefícios sociais, econômicos e ambientais no indispensável ir e vir das pessoas”, salienta o professor do Departamento de Transportes da Universidade Federal do Paraná Roberto Gregório da Silva Junior.
“Porém, ao longo dos anos, os usuários do transporte coletivo estão diminuindo em Curitiba, a exemplo do que tem ocorrido em outras grandes cidades brasileiras. As razões são várias, mas esse fenômeno é um grande desafio para a mobilidade urbana na cidade.”
Uma aposta de Curitiba é incentivar o uso do ônibus fora do horário de pico, quando as frotas circulam com movimento até 60% menor, por meio de um cartão de uso ilimitado em horários alternativos.
Outra ideia para atrair de volta o usuário é o retorno ao bom e velho bonde elétrico. O veículo leve sobre trilhos (VLT) existe hoje em uma dezena de cidades brasileiras que apostaram na ressurreição desse modal, que volta repaginado – a exemplo de São Paulo, que pretende implantá-lo no centro da cidade, ainda em fase de projeto.
Para estudar a viabilidade de sua implantação, Curitiba firmou parceria com o governo do Paraná e a Prefeitura de São José dos Pinhais (onde fica o aeroporto) para encomendar um estudo para implantação e concessão de uma primeira linha, considerada um eixo importante e de grande demanda, que liga o Centro Cívico da capital ao Aeroporto Internacional Afonso Pena.
Pelo projeto, seriam 22,8 km de extensão, 27 paradas e capacidade para 160 mil passageiros por dia. Em parte, a linha ocupará corredores que hoje pertencem ao ônibus rápido (BRT). A estimativa de custo é de R$ 2,5 bilhões, com verba do Programa de Aceleração do Crescimento do governo federal, e o plano é iniciar a concessão em julho de 2025, com mais dois anos de obras.
“O VLT tende a ter maior capacidade de carga, o que deverá ser comprovado ainda em estudos”, afirma o arquiteto e urbanista Marlos Hardt, doutor em gestão urbana e professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).
É uma modernização, mas há uma série de ressalvas. “Curitiba ficou um pouco refém da fama do seu sistema de BRT. De tão famoso, ele envelheceu sem as otimizações que seriam necessárias. E o VLT traz um alívio parcial para esse problema”, explica.
Por um lado, o VLT é associado ao conceito de modernidade, acessibilidade e sustentabilidade ambiental. “Ele tem grande potencial para substituir o carro individual, especialmente em trajetos que demandem média capacidade e em vias que necessitem ser compartilhadas com os carros e outras formas de mobilidade”, lembra Gregório.
Seria uma aposta para que as pessoas deixem o carro na garagem. “O aumento da oferta em linhas e horários já saturados é um desafio a ser superado para que o usuário seja incentivado a valorizar o sistema público em detrimento do transporte individual”, concorda o presidente do Movimento Pró-Paraná, Marcos Domakoski.
“Curitiba ficou um pouco refém da fama do seu sistema de BRT”
— Marlos Hardt
Mas e o impacto das obras em si? “A implementação na área central da cidade deverá adotar as medidas de preservação da paisagem urbana, sempre dando prioridade para o pedestre, pois esta é outra importante característica do urbanismo de Curitiba”, avalia Domakoski.
De acordo com o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc), “as intervenções viárias projetadas para Curitiba são orientadas para o benefício da coletividade e executadas conforme o planejamento da cidade, sem interferências nocivas à paisagem urbana”, e “o itinerário na sua maior parte não exigirá novas obras, como viadutos, além dos já existentes”, afirma o presidente do Ippuc, Luiz Fernando Jamur.
Ele lembra que o VLT é elétrico, complementar ao sistema de BRT e que irá compor a Rede Integrada de Transporte de Curitiba, tendo no itinerário proposto uma área de influência de 308.981 habitantes, devendo chegar a 312.359 pessoas no horizonte do projeto, considerando integrações.
Lançar mão de uma obra bem mais cara que o sistema BRT significa que ele ficou ultrapassado? Há pelo menos dez anos, cogitam-se mudanças estruturais que deem conta dos desafios da mobilidade na cidade. O professor Hardt lembra que Curitiba ficou durante muito tempo esperando recursos para conseguir viabilizar o seu sistema de metrô.
“Uma das razões pelas quais a cidade não avançou ao longo do tempo no seu transporte coletivo tem relação direta com o dinheiro. O BRT é um sistema muito mais econômico, e por isso foi possível fazer uma rede inteira com um valor que seria gasto em menos do que um ramal de metrô”, compara Hardt.
“Por conta de interesses de determinados setores da sociedade e da própria falta desse recurso, a cidade não avançou para nenhum lado – nem VLT, muito menos metrô. Hoje o BRT de Curitiba está sobrecarregado em diversas linhas, em horários específicos”, afirma.
Além disso, o BRT hoje atende porções da cidade que acabaram se supervalorizando justamente pela presença dele. “A parcela da população que tem acesso direto ao BRT hoje é muito pequena – e a tendência é que com o VLT ocorra a mesma coisa”, pondera Hardt.
Para o professor da UFPR, a queda de passageiros também é um forte indício da perversa exclusão social. “O crescente aumento dos custos operacionais e a diminuição das receitas ocasionam o aumento das tarifas em todo o país. E além do pagamento de suas passagens, os usuários brasileiros também arcam com as gratuidades que, no país, chegam a representar 20% do custo dos serviços. E outra parte da população não dispõe de recursos para pagar as passagens. Alguns estimam que cerca de 40% da população brasileira se desloca a pé.”
Para a Prefeitura de Curitiba, uma prioridade é a sustentabilidade do sistema. Por isso, foram investidos R$ 317 milhões na compra de 70 ônibus elétricos, que devem começar a rodar ainda no primeiro semestre do ano. Até 2030, a promessa é que 33% da frota opere com emissão zero, alcançando 100% até 2050.
“O desafio de Curitiba está na descarbonização com a mudança da matriz energética do sistema de transporte”, afirma o prefeito Rafael Greca. “A eletromobilidade é uma condição já definida para a nova concessão do transporte, a ser feita em 2025, cuja formatação já está em andamento a partir de uma parceria do município com o Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES)”, explica.
Diversos investimentos também foram feitos para tornar os trajetos mais rápidos, com melhorias em diversas linhas e eixos. Um destaque é o “Ligeirão”, considerado o maior ônibus do mundo, com 4 linhas e mais uma em obras, que traz redução de tempo de deslocamento e para em poucas estações – graças ao desalinhamento na posição dos tubos, é possível ao veículo ultrapassar os demais dentro da canaleta.
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