Valor Econômico – A possibilidade de uma seguradora assumir uma obra pública paralisada e garantir a execução do projeto deve se tornar mais comum em breve, com o lançamento de novas licitações com a chamada cláusula de retomada no seguro garantia. Depois do primeiro caso, em abril deste ano, no Mato Grosso, outros Estados, como Paraná, Sergipe e Pernambuco, buscaram seguradoras para entender melhor os detalhes do modelo, conforme apurou o Valor. No próprio Mato Grosso, já foram lançadas outras três licitações nos mesmos moldes.
Desde o fim de 2023, quando o prazo para adaptação à Nova Lei de Licitações foi encerrado, ficou estabelecido que os contratos de seguro garantia, comuns em grandes obras, teriam a chamada “cláusula de retomada” no caso de projetos acima de R$ 200 milhões. Essa cláusula prevê que, em caso de inadimplência da empresa contratada para uma obra pública, a seguradora irá assumir a responsabilidade pela conclusão do contrato.
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No Mato Grosso, foi aprovada uma lei que reduziu o valor que exige a cláusula de retomada para R$ 50 milhões, segundo o secretário de infraestrutura e logística, Marcelo de Oliveira. A primeira licitação foi para o asfaltamento de 50 km da rodovia MT-430, cujas obras já foram iniciadas. “Foram nove meses de conversas com as seguradoras para desenhar esse modelo e deu certo. Do lado das construtoras, elas viram que não podem apenas pegar o edital, ler e chegar no dia do processo licitatório com a apresentação dos preços. Elas têm que mostrar conhecimento do local, conhecimento da obra e têm que conseguir o seguro”.
A emissão de prêmios de seguro garantia cresceu 22% nos primeiros sete meses do ano, considerando, além do seguro das obras, o seguro garantia judicial. O produto é apontado entre aqueles com maior potencial de expansão. Um eventual empecilho para o avanço é a capacidade de cobertura das resseguradoras (as seguradoras das seguradoras), que pode ser insuficiente caso os investimentos do novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) aumentem nos próximos anos, diz Jorge Sant’anna, presidente da BMG Seguros. “O PAC, que ainda não decolou, preconiza que vamos ter um investimento de R$ 1,7 trilhão, sendo que de 2023 a 2026 seria R$ 1,4 trilhão. O esperado é que no próximo ano tenha um crescimento das obras, porque o governo vai ter que resolver o atraso”, diz.
Segundo Sant’anna, a crise do agronegócio de 2021 e 2022 e o estresse no crédito desencadeado pelo caso Americanas em 2023 provocaram retração dos resseguradores estrangeiros, que passaram a olhar o Brasil como um país “não tão livre de riscos”, afirma. “Continuamos vendo essa retração até agora”, diz.
“Hoje, o seguro garantia está numa posição importante, com infraestrutura regulatória para suportar crises, com seguradoras que sabem operar, mas o mercado de resseguro está assustado”, afirma. “Há três anos, a capacidade total das resseguradoras no país girava em torno de R$ 36 bilhões. Houve uma queda de quase 6% desde 2021 e acho que este ano será de mais queda.”
Cassio Amaral, sócio do Machado Meyer, também acredita que “pode haver uma dificuldade do estrangeiro entender a mudança de lei e dar capacidade suficiente para fazer os projetos do PAC”.
Segundo Pedro Farme, presidente da corretora de resseguros Guy Carpenter no país, o Brasil é hoje a maior exposição do mercado de resseguros para seguro garantia e, de fato, há um gargalo de crescimento da capacidade para os grandes grupos. “Quase que o mercado mundial inteiro de resseguros já está no seu limite para alguns tomadores brasileiros e, nesse sentido, é esperada certa restrição de capacidade para os mesmos nomes”, diz. “No entanto, novas companhias, novos segurados que queiram comprar seguro garantia terão uma abundância de capacidade”, afirma, ressaltando que os limites no Brasil são muito superiores aos alocados em outros países.
Roque Melo, presidente da comissão de crédito e garantia da Federação Nacional de Seguros Gerais (FenSeg) e presidente da Junto Seguros, diz que não há o risco do mercado sofrer com a ausência de capacidade das resseguradoras, mas que é necessário que as seguradoras se atentem que irão precisar de mais investimentos para atuar com esse tipo de produto e que a análise do risco será mais complexa. “Em termos de precificação, haverá mudanças no mercado também”, afirma. Para ele, nem todas as seguradoras estarão capacitadas para assumir esse risco. “Será um mercado com um número menor de seguradoras, mas isso não preocupa porque teremos um número suficiente para ter competitividade”, diz Melo.
A expectativa é que, em 2024, o seguro garantia cresça 29,3%, segundo a Confederação Nacional das Seguradoras (CNseg), que espera também um avanço de 17% em 2025. “Estamos muito esperançosos”, diz Esteves Colnago, diretor de relações institucionais da entidade. “O Mato Grosso foi o primeiro caso e, a partir dele, o setor segurador e as construtoras começaram a ter mais conhecimento. Isso tem ajudado em nossas conversas com outros Estados”, afirmou.
Até agora, cabia basicamente aos Estados a tarefa de analisar a situação financeira das candidatas a uma obra pública. Com esse modelo de seguro, há praticamente uma terceirização dessa função para as seguradoras, que irão avaliar os balanços antes da contratação do produto, explica Colnago. “A seguradora vai exigir o mínimo de governança, vai exigir um balanço, o que será positivo do ponto de vista também do setor público.”
Luciana Dias Prado, sócia do escritório de advocacia Lefosse, avalia o modelo como um “ganha-ganha” para o Estado e para o mercado securitário. “Para a seguradora, o risco de crédito é minimizado porque ela deixa de ter que cobrir uma espécie de fiança para construtoras que podem ficar sem condições financeiras”, diz. O prejuízo, segundo ela, pode ser menor que o do “seguro performance”, modelo mais tradicional em obras, que garante também a execução do contrato com pagamento de indenizações caso as condições de uma licitação ou concessão não sejam cumpridas.
Colnago estima que o mercado brasileiro tem 13 seguradoras que poderiam atuar com esse tipo de produto. O interesse dependerá, claro, se o produto, de fato, deslanchar. Nos últimos anos, algumas empresas começaram a ampliar equipes para dar conta da potencial demanda, contratando, por exemplo, gente especializada na análise e na gestão de obras.
Na Tokio Marine, que emitiu a apólice no caso do Mato Grosso, a preparação teve início em 2016, quando a lei era só um projeto, diz Caroline Ayub Silva, diretora de riscos financeiros da companhia. “Contratamos engenheiros para estudar quais documentos das obras deveriam ser analisados e montamos uma estrutura junto com compliance e a área jurídica. No fim do ano passado, ampliamos o número de engenheiros e passamos a ter equipe de subscrição, de análise de crédito e comercial especialistas em seguro garantia.”
Na BMG Seguros, a equipe foi contratada em 2019. “A seguradora tem que entender o que é o projeto, tem que acompanhar a obra. No final, é a seguradora que vai ver se está acontecendo alguma coisa, se tem algum desvio de custo e prazo. O objetivo da lei é reduzir também a corrupção durante o desenrolar do projeto”, diz Sant’anna.
A apólice emitida pela seguradora é equivalente a até 30% do valor total da obra. Se houver inadimplência por parte da construtora, a empresa de seguros vai decidir entre duas alternativas: concluir a obra, sendo responsável por encontrar outra construtora para seguir com os trabalhos, ou pagar o valor total da apólice, como explica Amaral, do Machado Meyer.
A escolha vai depender de cada caso, afirma Amaral. Supondo que uma obra de R$ 200 milhões seja abandonada após metade ter sido construída, como a construtora original ficou com 50% do valor da obra, a seguradora entra na obra com um saldo de R$ 100 milhões para cumprir os outros 50%. Se ela encontrar uma construtora que termine o projeto por esses R$ 100 milhões, não terá que pagar nada.
Na vida real, porém, é esperado algum ajuste de preço para a retomada das obras, por fatores como um eventual aumento da inflação dos materiais ou por gastos com novas licenças, como explica Amaral. Se o valor para essa etapa final for superior a R$ 100 milhões, a seguradora desembolsa até 30% do valor do contrato, que, no caso desse exemplo, seria de R$ 60 milhões. Se o custo for maior que os R$ 160 milhões, o Estado banca a diferença.
“Em casos de o sobrecusto ser muito grande, pode ser que as seguradoras optem por apenas pagar os 30%”, diz Amaral. A lei diz ainda que, caso haja aditivos, devido à mudança de escopo e prazo, a seguradora é obrigada a segui-los, tendo o direito de cobrar um adicional por isso.
Ainda há alguns pontos que devem evoluir, na avaliação de Colnago. A CNseg discute com o Congresso a criação de uma minuta de decreto visando a blindagem do valor do seguro contra, por exemplo, a cobrança de multas que seriam de responsabilidade da construtora original da obra. “Queremos que fique mais clara essa separação de obrigações”, afirma.
Para Thomaz Kastrup, também sócio do Machado Meyer, a lei, do jeito que está hoje, ainda “não dá o conforto” de que todo o passivo da obra, como ações trabalhistas e fiscais, ficará com o antigo responsável. “Não ficaria surpreso de ver seguradoras sendo responsabilizadas e vistas como sucessoras da construtora do início da obra. Esse é um problema que tem que ser resolvido”, diz.
Outro desafio para as seguradoras será operacionalizar a retomada do projeto, segundo Amaral. “Só o tempo vai dizer como será essa operacionalização. Será preciso, por exemplo, fazer um inventário da obra, buscar novas licenças, pensar na assinatura de novos contratos. É uma regulação de sinistro muito complexa”, afirma o advogado.
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