Historicamente a ferrovia sempre foi uma luta política dos mato-grossenses, especialmente para os cuiabanos. Este sempre foi o sonho da integração efetiva, segura e de baixo custo com os estados mais desenvolvidos do país e porque não dizer com o mundo.
A luta por sua realização remonta dois séculos atrás em período imediatamente posterior à Guerra do Paraguai, época em que a capital do estado estava isolada exceto pelas águas do sinuoso Rio Cuiabá. Uma desvantagem logística comparada a Campo Grande, cidade fundada após o fim da Guerra do Paraguai e localizada no centro-sul do então estado de Mato Grosso.
Com o passar do tempo a distância entre as duas cidades foi ficando ainda maior que as centenas de quilômetros que as separavam transformando-se de uma questão sentimental em ações e reações mais contundentes, até agressiva para os mais exaltados.
Passados alguns anos, foi implantada a ferrovia E. F. Itapura-Corumbá, (1908-1914) que por sua vez se interliga à primeira fase da ferrovia da Noroeste do Brasil em 1917 no trecho Bauru-Itapura, (o rio Parana separava as duas ferrovias) dizem que como forma de acalmar os ânimos divisionistas.
A outra justificativa, esta resguardada por elementos técnicos e políticos no âmbito nacional, mostra que na primeira década do século XX, mais especificamente em 1903, a empresa ferroviária Noroeste do Brasil foi autorizada a desenvolver um projeto para ligar a cidade de Bauru, no estado de São Paulo a Cuiabá, capital de Mato Grosso.
Entretanto, por decisão de política externa a obra teve seu destino final modificado para Corumbá independentemente de sua viabilidade econômica, mas sim pela possibilidade de mais tarde ser interligada à malha ferroviária boliviana e dai por diante chegar ao oceano Pacífico tornando-se a primeira ferrovia a ligar o oceano Atlântico ao Pacífico na América do Sul, uma proposta tão ambiciosa que até hoje não foi concretizada.
Fosse uma ou outra a razão, a política divisionista existente no sul desde o final da Guerra do Paraguai nunca se abrandou, mesmo com a aceitação pacífica dos matogrossenses que habitavam o centro do estado sabendo que o ponto final do primeiro estudo sobre a implantação da ferrovia era Cuiabá.
Dessa maneira, o ímpeto pela independência política do sul continuou vivo até 1978, ano em que uma conjugação de fatores políticos determinou sua realização.
Mesmo assim a divisão que inicialmente se configurou como um problema logo transformou-se em impulso desenvolvimentista para Mato Grosso, muito embora o governo federal não tenha cumprindo os compromissos assumidos para a superação do período de transição que se seguiu, principalmente porque todo o passivo referente aos dois novos estados ficou para o ente desmembrado ou remanescente.
Tivesse aquela ferrovia vindo para cá naquela época, mesmo período da construção de outra ferrovia construída no antigo Mato Grosso, a Madeira-Mamoré, nosso desenvolvimento certamente teria sido outro.
A implantação da ferrovia Madeira-Mamoré, conhecida como a ferrovia da morte, aconteceu entre 1907 e 1912, já no final do ciclo da borracha para atender a produção dos seringais da região noroeste do país entre Guajará-Mirim e Porto Velho de onde saia via rio Madeira para juntar-se à extração do látex mais ao norte, ambas retiradas através dos rios da Bacia Amazônica. Já a produção localizada do centro-oeste do estado era destinada a Cuiabá e daqui seguia via fluvial para Corumbá e daí em diante pela Noroeste do Brasil e rios da Bacia do Paraguai.
Para se ter ideia do que aconteceu no passado, aproximadamente 40 mil toneladas de látex eram exportadas anualmente pelo Brasil até meados de 1910. Como sabemos o país não fez parte da primeira revolução industrial (1760 – 1860) por motivos óbvios (ela se deu somente na Inglaterra) nem da segunda revolução industrial (1860 – 1900) por estarmos envolvidos na Guerra do Paraguai (1864-1870) e outras questões políticas.
No entanto, permanecer durante o restante do século XX sem promover adequadamente a industrialização de nossa produção de commodities é no mínimo um disparate, como diriam os antigos cuiabanos.
Hoje Cuiabá continua a ser a capital de Mato Grosso, agora movido pelas condições que o tornaram moderno e eficiente em sua vocação pelo agronegócio. Nos falta ainda o que sempre faltou, políticas voltadas ao desenvolvimento contínuo dessa aptidão natural através da construção das condições necessárias ao processamento das matérias primas aqui produzidas se não no todo, mas em porção suficiente para gerar emprego para a população e renda ao estado.
É certo que precisamos buscar soluções para a exportação de nossa produção, mas não desenvolvermos alternativas para industrializar parte dela por aqui será outro disparate, um disparate inaceitável, até porque já existe uma movimentação em torno de 20 milhões de toneladas/ano de produtos diversos vindos via ferrovia do sudeste do país até Rondonópolis como carga de retorno, parte disso na forma de produtos que voltam para cá após serem processados e/ou industrializados em outras partes do país.
Se fizermos uma avaliação objetiva comparando o que precisa ser feito com o que se fez de concreto para estimular nosso desenvolvimento Industrial vamos encontrar vários estudos e projetos, porém poucas realizações, a maioria delas por iniciativa e esforço exclusivo do próprio empresariado. Por isso precisamos refletir sobre o que aconteceu desde o longínquo passado e o que precisamos fazer a partir de esforços conjuntos para transformar em realidade o desejo de tornar a maior região produtora de commodities agropecuárias do mundo em seu correspondente industrial.
O que não pode acontecer é termos as soluções ferroviárias em andamento percebidas como concorrentes ainda que sejam soluções regionais.
Seja para a ampliação da linha existente da Rumo, seja para a implantação da FerroGrão em direção ao norte e da Fico para o leste, estas ferrovias nunca serão concorrentes sob o aspecto econômico, serão sim soluções logísticas que interferirão positivamente no custo dos fretes porque neste aspecto a concorrência será muito bem vinda.
A malha ferroviária a ser implantada em quase todo o estado eliminará qualquer crise regional que tenha intenção semelhante àquela que culminou com a divisão do estado em 1978 porque ao contrário daquela elas servirão como elemento de união contra as vozes que se aventuram em dizer que as ferrovias que estão sendo viabilizadas para a retirada da produção do centro e do norte do estado serão fatores de estímulo divisionista. Uma sandice, pois o que se busca com isso é promover o desenvolvimento equânime de todos os recantos do estado .
Vejam que o verbo “retirar” é presença constante em todos os raciocínios desenvolvidos sobre nossa produção quando o correto será conjuga-lo em conjunto com o verbo “industrializar”, este nos tempos “presente” e “futuro do presente”.
Ora, se precisamos industrializar nossa produção agropecuária em Cuiabá e outras cidades do estado precisamos dotá-las das condições necessárias para que esse processo se instale definitivamente e não ficarmos esperando que o modal ferroviário resolva nossas necessidades, afinal sabemos que a ferrovia é solução eficiente para parte do problema ou seja, para o alto custo do transporte de insumos e da produção seja ela “in natura” ou processada.
Exemplos disto são as implantações dos Distritos Industriais do estado iniciadas no final dos anos 70 início dos anos 80, cujas instalações não foram suficientemente concluídas para alavancar o desenvolvimento industrial do estado muito embora tenham contribuído para que acontecesse.
No caso do Distrito Integrado, Industrial e Comercial de Cuiabá – DIICC, podemos afirmar que se tratava de um proposta voltada a cumprir integralmente seu propósito.
O projeto abrangeu uma área de aproximadamente 712 hectares e foi pensado de forma setorizada de modo que as atividades industriais foram distribuídas de acordo com o grau de poluição e tipo de efluente a ser gerado, tendo o mesmo procedimento adotado para sua setorização comercial.
Contava ainda com áreas verdes destinadas a preservação ambiental, estação de tratamento de efluentes, subestação de energia, equipamentos sociais, habitação e terminal ferroviário. Prova inequívoca de que um único vetor se não complementado adequadamente não resolve a equação, faltaram esforços públicos para as soluções privadas de transformação da produção.
Voltando a tratar especificamente da luta secular para trazer uma ferrovia a Cuiabá, são notórios os esforços e os trabalhos desenvolvidos para mostrar sua viabilidade técnica, econômica e ambiental, mas sempre ficavam dependentes de recursos financeiro.
Agora, devido as mudanças na forma de gerir os investimentos no país, aquele que sempre foi o gargalo da questão parece estar resolvido pela aparente intenção da iniciativa privada em financiar e executar as obras. Cabe ao Governo Federal, ao estado e a região metropolitana de Cuiabá juntarem esforços para solucionar os entraves por ventura existentes e dar condições para que a indústria de transformação se instale por aqui definitivamente.
A chegada da ferrovia a baixada cuiabana será muito bem vinda, mas precisamos promove-la como parte da solução logística para o transporte no estado de modo que a continuidade da luta por sua concretização não seja confundida com uma condicionante política, esta sim poderá desagregar os matogrossenses.
*Marcelo Augusto Porto Carrero é engenheiro civil.
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