Relação entre Brasil e China se rende ao pragmatismo

Quando Aluizio Napoleão desembarcou em Pequim, em 1975, para servir como o primeiro embaixador brasileiro no país, a maior dor de cabeça da chancelaria chinesa foi a rotatividade dos cozinheiros destinados à residência oficial. Cada vez que Regina, a mulher do embaixador, entrava na cozinha e via a comida sendo provada diretamente das colheres que mexiam os caldeirões, dispensava os serviçais.

Integrante da missão que, no ano anterior, atravessou o único semáforo de Brasília rumo ao Palácio do Itamaraty para firmar, com o governo Ernesto Geisel, o estabelecimento das relações diplomáticas entre os dois países, Chen Duqing relata com bom humor as exigências da embaixatriz. Em seu primeiro posto no Brasil, como número 2 da embaixada, Chen dividia apartamento com um colega sem direito a levar a família para o país.

Ainda que tenha passado por outros postos, como Moçambique e Timor Leste, foi no Brasil que compartilhou das agruras da vida nacional. No segundo posto, como cônsul em São Paulo, no início dos anos 90, o consulado teve seus bens bloqueados pelo Plano Collor, e Chen ouviu de um colega: “Imagine se fosse um país comunista”.
Aos 72 anos, com sequelas de um tratamento de câncer nos rins, o que não o impede de se deslocar de ônibus por Pequim, Chen Duqing não se queixa da penúria do início de carreira, que atribui à pobreza de seu país à época. As primeiras viagens para o Brasil, diz, só aconteceram por obra e graça dos soviéticos.

É de Brasília a imagem que estampa seu WeChat, uma das redes sociais mais populares da China, mistura de WhatsApp, Google e PayPal. É para sua tela que qualquer chinês se dirige quando parado por um transeunte perdido, ainda que esteja atravessando a rua em meio ao caótico trânsito de Pequim. Carros, motocas, triciclos elétricos e ônibus têm passagem livre à direita, fecham os cruzamentos e levam os motoristas a usar as buzinas como extensão do corpo.

Foi o Brasil, no entanto, que, na visão de Chen, ficou preso no congestionamento. O tom é de lamento. Num português irretocável, aprendido em Macau na década de 60 e cultivado até 2009, quando encerrou sua carreira como embaixador no Brasil, resume suas impressões: “Quando cheguei pela primeira vez, era um país em tudo mais avançado que a China. Quando saí de meu último posto, o Brasil já tinha ficado para trás”. O consolo é que não foi só o Brasil.

Se a crise de 2008 alavancou a economia da China sobre os pilares puídos da desregulamentação financeira, a da democracia espalha incertezas mundo afora, mas esbarra na muralha. Enquanto não se chega a uma conclusão sobre que nome se dá ao regime de Donald Trump, Jair Bolsonaro, Boris Johnson e Viktor Orbán, nem tampouco se sabe o que virá depois deles, Xi Jinping batizou o seu de “socialismo com características chinesas”.

Um mês depois da celebração dos 70 anos da República Popular da China, ainda há bandeiras nas fachadas, populares com bandanas vermelhas no antebraço, carros com adesivos “Eu sou chinês” e caravanas que continuam a chegar dos rincões do país para posar em frente aos banners comemorativos da praça Tiananmen.

Não foi o socialismo nem a democracia que fizeram aniversário, mas a julgar pelos 300 anos em média das dinastias chinesas, esse regime ainda pode estar longe de chegar ao fim. Em palestra, no ano passado, na academia militar de West Point, nos EUA, Kevin Rudd, ex-primeiro- ministro australiano que hoje preside o mais renomado centro de estudos sobre a China (Asia Society Policy Institute), resumiu as razões pelas quais o tempo do Ocidente embaça a compreensão do país: “Quando esta nação [os EUA] nasceu, a China estava no seu apogeu”.

Rudd credita ao atual presidente, Xi Jinping, a ambição de devolver o país à condição alcançada na dinastia Qing (1644-1911), que comandava “tudo sob o céu” e enumera os feitos: descartou os líderes que lhe faziam concorrência via combate à corrupção, removeu a limitação constitucional de dois mandatos, governa com profundo conhecimento da história da China e antecipa e desmonta as reações às políticas de governo com seu domínio do que chama de marxismo dialético.

Filho de um dirigente partidário expurgado pela Revolução Cultural, Xi deixava a juventude comunista para se tornar um integrante do partido em sua província quando a China começou a formalizar suas relações diplomáticas com o Ocidente. Dois anos já haviam se passado do encontro entre Mao Tsé-tung e Richard Nixon, quando Geisel chamou os comandantes militares para comunicar que a diplomacia brasileira, sob os auspícios do chanceler Azeredo da Silveira, estabeleceria relações com os chineses. “A Argentina e a Venezuela já tinham saído à frente. Pratini de Moraes [ex-ministro da Agricultura] já tinha convencido [Emílio] Médici a liberar um embarque de açúcar para a China. Geisel não tinha como retroceder”, lembra Chen.

Mao saía de cena naquele momento, mas não o conceito de Terceiro Mundo em que, ante a polarização entre EUA e União Soviética, a China buscou abrigo e companhia. Hoje renomeada para “países em desenvolvimento”, é nesta concepção que o país continua a se respaldar, a despeito de estar em marcha acelerada para se tornar a maior economia mundial. É uma ambiguidade que encontra respaldo na arquitetura da capital.
Entre uma e outra esquina de Pequim, é possível sair de um arranha-céu de fachada espelhada e curva e entrar num “hutong”, as tradicionais vilas de pé-direito baixo, banheiros coletivos, varais de roupa e cadeiras na calçada que tanto foram usados pelo regime para dar respaldo à ideia de que o comunismo estava entranhado na ancestral vida comunitária do país.

Foi nessa condição de representante máximo das “nações em desenvolvimento” que, dias antes da chegada do presidente Jair Bolsonaro a Pequim, o governo chinês anunciou a autossuficiência na produção de alimentos para seus quase 1,4 bilhão de habitantes. Em três páginas de jornal, com chamadas de primeira página, o relatório governamental de segurança alimentar não citou uma única vez o Brasil, que tem na China o principal destino de suas exportações e delas tira metade do seu saldo comercial, tendo a soja como carro-chefe.

O Brasil não foi o único esquecido. No documento oficial, o intercâmbio comercial só é mencionado para colocar a China como fomentadora da produção agrícola com vistas a garantir a segurança alimentar de países em desenvolvimento.
Naquele dia, a tradutora Weng Yilan foi ao supermercado e encontrou uma embalagem com meio quilo de carne de porco, produto da cesta básica chinesa, por 60 yuans (R$ 35). Nas elocubrações de Weng sobre a carestia apareceu até o desestímulo oficial a criadores de porcos para conter o efeito estufa, mas ficaram de fora a peste suína e as sanções comerciais americanas.

O calhamaço oficial não informa, mas a base da alimentação dos porcos, principal carne consumida no país, é a soja. A brasileira responde por 2/3 das importações chinesas do produto, segundo o relatório do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), “Brasil-China, o Estado da Relação, Belt and Road e Lições para o Futuro”, mais recente e amplo apanhado das relações bilaterais.

Com o arrefecimento da guerra comercial da China com o outro grande fornecedor, os EUA, a fatia brasileira no mercado de soja deve cair, mas não a ponto de deslocar sua primazia, nas previsões de um dos autores do relatório, o ex-embaixador Marcos Caramuru, hoje consultor em Xangai.
Foi esta a realidade que se impôs quando, passada a campanha eleitoral e o discurso de posse do chanceler em louvação à cultura ocidental, o governo Bolsonaro se deparou com a incontornável dependência do país do gigante asiático. Além de determinar que a China deveria comprar no Brasil e não o Brasil, o então candidato do PSL achara por bem visitar Taiwan, a maior pedra no sapato da política externa chinesa.

Empossado, cancelou encontro que teria em Davos porque Xi Jinping se atrasou. Foi mais paciente em esperar Trump nos corredores das Nações Unidas para um breve aperto de mão, dias antes de vir à tona que os EUA haviam recuado do apoio à entrada do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Não há consenso sobre o peso da intrépida campanha eleitoral sobre as relações. Ainda que a queda nos investimentos no Brasil em 2018 seja eloquente, a China freou no mundo inteiro. Chen atribui a marcha lenta a investimentos equivocados, como em times de futebol, e à necessidade de tirar 20 milhões da pobreza; e Caramuru, a oscilações dos ciclos de investimento.

Pedro Rebelo e Keila Cândido, jovens consultores que fizeram pós-graduação na China e hoje atuam na intermediação de negócios, relatam incertezas resilientes na percepção dos empresários sobre o futuro da relação bilateral. Todos convergem na avaliação de que o resto do mundo terá que se conformar a um menor patamar de crescimento de um país que, em breve, estará sob os efeitos da pirâmide etária invertida.

A realidade virtual da autossuficiência se distancia da análise prevalecente sobre a intenção do país de desconcentrar seus fornecedores. É a independência advinda dessa diversificação que abre espaço para a China ampliar os rumos daquela que é sua principal plataforma para o século XXI, a iniciativa Cinturão e Rota, mais conhecida por sua designação em inglês, “Belt and Road”.

Caramuru atribui uma importância maior a uma posição brasileira sobre o programa, ao qual já aderiram, em maior ou menor grau, Chile, Uruguai, Bolívia e Venezuela, do que aos atos que venham a ser assinados durante a visita: “É o ‘Belt and Road’ que vai dimensionar o abraço”.
Trata-se do maior programa de fomento à infraestrutura desde que o Banco Mundial reduziu o escopo de seus investimentos no setor em meados dos anos 90. Sua ambição é medida pela comparação corriqueira ao Plano Marshall, iniciativa americana que reergueu a Europa e consolidou a liderança americana na ordem mundial do pós-guerra.

Um sinal pouco auspicioso da disposição brasileira ao abraço é dado pela resistência do país em pagar o ingresso de US$ 5 milhões para ter acesso ao Banco Asiático de Infraestrutura e Desenvolvimento, braço financeiro do programa.

Em entrevista ao Valor, o embaixador Yang Wanming tratou o avanço dos entendimentos sobre o programa como uma das expectativas da China em relação à visita. No seu balanço, o “Belt and Road”, em seus seis anos, gerou 300 mil empregos em todo o mundo e acumula investimentos da ordem de U$ 100 bilhões, U$ 20 bilhões a mais do que todo o estoque de investimentos feito pela China no Brasil ao longo de 45 anos de relação bilateral.

Na esteira dessa aproximação, Yang avançou para dar como certa a inexistência de vetos à Huawei na licitação da tecnologia 5G no país em 2020, cujas regras ainda estão por ser definidas pela Anatel. A pressão americana contra a abertura do Brasil ao 5G é um tema sobre o qual a diplomacia chinesa não faz rodeios. Sua percepção de que se trata de mais de uma disputa de mercado do que de privacidade é compartilhada por setores do governo brasileiro.

De Chen Duqing (“Com que autoridade um país que grampeou uma presidente da República brasileira vem falar de risco à segurança da informação?”) a Yang Wanming (“O objetivo é suprimir o desenvolvimento de outros países e preservar seus próprios privilégios”), não há punhos de renda na defesa da tecnologia que abre caminho para a supremacia chinesa na economia mundial.

O Brasil ainda parece estar em condições mais confortáveis para definir as regras de expansão do 5G no país do que, por exemplo, a Argentina, cuja necessidade de negociar com o FMI, depois das eleições presidenciais, pode vir a deixar o país mais suscetível às pressões americanas.

No imponente Museu Nacional da China, erguido à esquerda do mausoléu de Mao Tsé-tung na praça Tiananmen, está em cartaz uma exposição dos objetos recebidos pela República Popular da China ao longo de seus 70 anos de existência. À porta, uma advertência equipara publicações políticas a explosivos como objetos proibidos. O monopólio é do museu. No térreo, uma grande exposição louva os feitos de Mao. No último piso, a abertura internacional é exposta como aquisição de um regime que passou de 18 países com relações diplomáticas em 1949 para chegar a 172 hoje.

O Brasil está representado por um tucano de bico de prata e corpo de cristal, presenteado por Fernando Henrique Cardoso a Jiang Zemin em abril de 2001. Naquele momento, já parecia claro que a parceria estratégica firmada pelo dirigente chinês com o governo Itamar Franco não se confirmaria.

De lá para cá a China se reaproximou da Rússia e se firmou como o pólo irradiador do crescimento na Ásia, que caminha para deixar o resto do mundo a reboque. Ao longo desse período, na opinião de Chen, o Brasil se distanciou do que, de fato, se passa na China. Entre outros motivos, por ter se acomodado ao consumo de informações de agências americanas e europeias.

Os brasileiros certamente não estariam mais bem informados pela imprensa oficial chinesa, mas os conflitos em Hong Kong, por exemplo, poderiam ser mais bem dimensionados. O país que já chegou a representar 15% da economia da China, hoje se reduz a 3%. “Quantos jornais e TVs brasileiras têm correspondente na China?”, pergunta.
A ausência priva a crônica nacional do dilema atribuído a um velho diplomata: com uma semana na China, todo mundo quer escrever um artigo. Passado um mês, a ambição é por um livro. Um ano depois, quando todas as certezas sobre o país ruíram, chega-se à conclusão de que talvez seja melhor não escrever nada.

Fonte: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2019/10/25/relacao-entre-brasil-e-china-se-rende-ao-pragmatismo.ghtml

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