Ofensiva para destravar projetos

— Foto: Valor
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Valor Econômico – Um país que historicamente desenvolveu sua infraestrutura de forma errática e acanhada, marcado por obras mal planejadas e inacabadas – mas que, principalmente nas últimas duas décadas, tem conseguido recuperar um pouco do tempo perdido, ao se abrir para a participação cada vez maior da iniciativa privada nas áreas de logística, energia, saneamento básico e telecomunicações. E que deve continuar avançando nessa direção promissora, independentemente de qual seja o próximo governo, na opinião de especialistas dedicados ao tema.

“Esse é um caminho sem volta, reconhecido e reforçado por todos os governos desde os anos 1990, quando aconteceram as primeiras privatizações. Afinal, a falta de recursos públicos para obras, o que obrigou o país a romper preconceitos contra a transferência de ativos para a administração privada, é cada vez mais flagrante”, pondera David Goldberg, da consultoria Terrafirma.

Apesar de algumas apostas em projetos mal planejados e executados, é possível enxergar progressos nos vários setores da infraestrutura. As concessões de portos, aeroportos, ferrovias e rodovias, por exemplo, aceleradas a partir de 2019, garantiram nesses últimos anos investimentos de cerca de R$ 73 bilhões na ampliação e modernização desses ativos, além de destinar R$ 18 bilhões aos cofres do governo com as outorgas.

Na área energética, plantas eólicas e solares estão se multiplicando em todas as regiões brasileiras, estimuladas pela necessidade empresarial de cumprir metas de compensação do carbono para atender exigências dos consumidores. Aliás, o investimento em energia solar, acessível também a pessoas físicas interessadas em reduzir as contas de luz, tem crescido geometricamente nos últimos meses por causa da promessa de isenção de uma taxa de uso até 2045 aos projetos domiciliares aprovados antes de 7 de janeiro de 2023. A Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar) prevê que a energia limpa capturada do sol encerre o ano como a segunda fonte da matriz energética do país, atrás apenas da hidráulica.

Há boas notícias também no setor de telecomunicações – que acaba de levar a tecnologia 5G, a quinta geração da internet móvel, a todas as capitais do país – e no saneamento básico, cujo novo marco regulatório desburocratiza e estimula a participação privada na construção e operação de redes de água e esgoto, em parceria com administrações municipais e estaduais.

Um estudo da Deloitte para o Ministério da Economia sobre o impacto da implantação do 5G estima que essa nova tecnologia movimentará até R$ 590 bilhões até 2032, levando em conta seus vários efeitos positivos no aumento da produtividade e na redução de custos de conectividade. Logística, educação, indústria e agricultura estão entre os setores que serão mais beneficiados.

Já as novas regras de licitação para os contratos de saneamento básico, estabelecidas com a meta de levar água para 99% das residências brasileiras e estender a coleta e tratamento de esgoto para 90% delas até 2033, buscam atrair investimentos de outras centenas de bilhões de reais – R$ 753 bilhões, no cálculo da consultoria KPMG, ou R$ 507 bilhões, na previsão mais modesta do Ministério do Desenvolvimento Regional. Um estudo da Abcon Sindicon, associação das operadoras privadas de saneamento, mostra que o setor poderá contribuir com um acréscimo de R$ 1,4 trilhão no Produto Interno Bruto (PIB) em 12 anos, com a geração de 1,5 milhão de postos de trabalho. Talvez seja ambicioso demais estender em poucos anos o atendimento aos 35 milhões de brasileiros que ainda não recebem água potável e os 100 milhões que não têm acesso à coleta de esgoto, mas a priorização de um serviço tão básico não deixa de ser louvável.

Apesar desses avanços, a fotografia do momento segue mostrando um grande déficit estrutural no país. De acordo com estudo da consultoria de negócios Inter.B, os investimentos em infraestrutura no ano passado – dois terços deles bancados pela iniciativa privada – corresponderam a apenas 1,71% do PIB, menos da metade dos 3,64% considerados ideais para a correção dos gargalos nas várias frentes. O maior hiato continua sendo na área de transportes, onde se investiu três vezes menos do que o necessário: 0,55% do PIB ante o percentual necessário de 1,75%, segundo as contas da consultoria.

“Além de escassos, os recursos públicos no Brasil muitas vezes financiam obras com sérios problemas de planejamento, que levam a paralisações e enormes desperdícios, como vem acontecendo com as três principais ferrovias projetadas nas últimas três décadas, que são a Norte-Sul, a Transnordestina e a Fiol. A Ferrogrão, cogitada para escoar a produção de grãos do Centro-Oeste para o Arco Norte, felizmente ainda não saiu do papel, porque é um projeto que não para em pé”, critica Claudio Frischtack, da Inter.B.

Na avaliação de Frischtack, a Ferrogrão, projetada para ligar Sinop (MT) a Miritituba (PA), num trajeto de 976 quilômetros (km), tem orçamento subestimado (de R$ 21,5 bilhões), enfrenta sérias resistências por cruzar um parque nacional e áreas indígenas, além de correr o risco de ter um trecho periodicamente inundado pelas cheias do rio Jamanxim. “É um projeto cheio de falhas, que não deve evoluir, apesar do empenho do atual governo. Além disso, a BR-163 já faz a ligação entre essas mesmas cidades e foi recentemente privatizada”, afirma.

David Goldberg, da Terrafirma, tem a mesma opinião. “Numa época em que as empresas em geral são pressionadas a divulgar suas metas de sustentabilidade, aderindo às boas práticas ambientais, sociais e corporativas da agenda ESG, é um risco muito grande para associar a imagem de uma companhia a uma ferrovia que vai rasgar a Amazônia”, nota.

Já Paulo Resende, coordenador do Núcleo de Infraestrutura da Fundação Dom Cabral (FDC), aprova a construção da Ferrogrão, que considera essencial para dar ainda mais competitividade às exportações do agronegócio brasileiro. “É uma ferrovia que vai encher os vagões logo no primeiro dia de funcionamento, porque a demanda é gigantesca.”

No quesito ferrovias, Resende apoia a política do Ministério da Infraestrutura (Minfra) de estimular as várias oportunidades de expansão nesse modal, que na última metade do século 20 foi desprezado e desmantelado por sucessivos governos. “Somos o único país continental onde o transporte rodoviário é muito mais utilizado do que o ferroviário. Para corrigir essa distorção teremos de atrair, pelas próximas décadas, muitos novos investimentos em ferrovias”, avalia. No ritmo atual de execuções de projetos e concessões, ele acredita que será possível aumentar a participação do modal ferroviário na matriz de transportes dos atuais 20% para 30% em 2035.

Para o professor da FDC, o programa federal Pro Trilhos, que abre a possibilidade para empresas privadas construírem os ramais ferroviários de seu interesse, a partir de meras autorizações do governo – algo que o Visconde de Mauá podia fazer, um século e meio atrás, mas que passou a ser proibido –, também é uma boa iniciativa, embora tenha um papel apenas complementar na expansão da malha ferroviária. “Já foram feitos mais de 80 pedidos, mas creio que 20, no máximo, devem vingar. E serão projetos de curto alcance, para levar a carga de uma fábrica até uma ferrovia principal”, prevê. Para o Minfra, entretanto, o programa, instituído em setembro de 2021, já é um sucesso pelo interesse despertado: os projetos recebidos até agora, vindos de 39 diferentes proponentes, somam R$ 258 bilhões de investimentos e 22,4 mil km de trilhos, mais de dois terços da disponibilidade brasileira atual.

Um desses projetos por autorização, que já começou a andar, foi proposto pela Rumo, a empresa de logística do grupo Cosan que opera a ferrovia entre Rondonópolis (MT) e o porto de Santos (SP), por onde escoa metade da produção de grãos do Centro-Oeste – a outra metade vai pelo Arco Norte, a partir de Sinop, pela BR-163. Interessada na ligação de 730 km entre Rondonópolis e Lucas do Rio Verde (MT), a Rumo conseguiu a autorização estadual e a primeira licença ambiental para implantar os novos trilhos – obra que representará um obstáculo a mais à viabilização da Ferrogrão, uma vez que Lucas do Rio Verde está a apenas 150 km de Sinop, na região central de Mato Grosso. Além disso, o orçamento dessa ferrovia está estimado entre R$ 9 bilhões e R$ 11 bilhões, ou seja, a metade do imaginado para a Ferrogrão.

Um dos municípios que mais produzem grãos no país, Lucas do Rio Verde também está no traçado da futura Ferrovia de Integração Centro-Oeste (Fico), que ligará Mara Rosa (GO), uma das paradas da Norte-Sul, até Vilhena (RO). O primeiro trecho da Fico, de Mara Rosa a Água Boa (MT), de 380 km, começou a ser construído pela Vale em setembro último, em contrapartida à renovação antecipada das ferrovias Vitória-Minas e Carajás, operadas pela mineradora – o contrato assinado com o governo prevê que esta obra, orçada em R$ 2,7 bilhões, seja integralmente financiada pela Vale e repassada à União em seguida para um leilão de concessão. O trecho de Água

Boa a Lucas do Rio Verde, de 557 km, é o próximo a ser construído, segundo o cronograma do Minfra, já aproveitando recursos da outorga do trecho implantado e devolvido pela Vale.

A estratégia do Minfra de embutir contrapartidas importantes na concessão de ativos atraentes para a iniciativa privada, bem como na renovação antecipada deles, tem mostrado resultados positivos. Outro bom exemplo dessa negociação engenhosa foi a nova concessão da Via Dutra, entre São Paulo e Rio de Janeiro, cujo trânsito de caminhões movimenta cerca de metade do PIB brasileiro.

Para ter o direito de explorar por 30 anos a principal rodovia brasileira, a concessionária CCR, que já administrava a Dutra, assumiu o compromisso de investir R$ 14,83 bilhões na modernização completa da rodovia, o que incluirá a duplicação de um trecho de 16 km na serra das Araras, a construção de faixas adicionais e passarelas nas entradas de cidades, iluminação em LED e monitoramento por câmeras em todo o trajeto e a instalação do sistema “free flow”, com cobrança do trecho percorrido pelo controle das placas dos veículos ou pelo uso de tag. Além disso, a ganhadora do leilão teve de levar também a concessão da BR-101 no trecho de 270 km entre o Rio de Janeiro e Ubatuba (SP). Nesse caso, mais interessante ao governo era garantir a recuperação e ampliação da rodovia litorânea do que arrecadar uma grande outorga, que acabou sendo de R$ 1,77 bilhão.

A prática governamental de oferecer o “filé com osso”, ou seja, juntar num mesmo pacote a ser leiloado um ativo que garante boa remuneração ao ganhador com um ou mais que sejam menos interessantes, possivelmente até deficitários, tem sido aplicada principalmente nas concessões de aeroportos. A recente concessão do aeroporto de Congonhas, em São Paulo, um dos mais movimentados do Brasil, foi feita junto com outros dez de expressão bem menor – faziam parte dessa lista três aeroportos do Mato Grosso do Sul (Campo Grande, Corumbá e Ponta Porã), três de Minas Gerais (Uberlândia, Uberaba e Montes Claros) e quatro do Pará (Santarém, Marabá, Parauapebas e Altamira). Apesar de uma oferta com tanto osso, o leilão arrecadou uma outorga de R$ 2,45 bilhões e garantiu R$ 5,8 bilhões de investimentos nos próximos 30 anos.

Vale citar ainda os avanços conseguidos nos últimos dois anos pelo segmento de transportes dedicado às entregas na última milha, a fase final de distribuição que faz chegar ao consumidor as compras feitas on-line – que seguem crescendo, mesmo com a reabertura das lojas físicas depois do pior período de pandemia. É nessa área também que se percebem mais ações de sustentabilidade no sentido de racionalizar os trajetos e reduzir emissões de carbono.

A DHL, que movimenta cerca de 200 mil toneladas de mercadorias no Brasil, já substitui 81 veículos convencionais – caminhões de porte médio e vans – usados nas entregas da última milha por modelos elétricos e vai incorporar mais 61 a essa frota verde no próximo ano. “A meta é substituir todos, progressivamente”, revela Solon Barrios, diretor de Supply Chain da companhia.

A Jadlog, controlada pelo DPDgroup, segunda maior rede de entregas na Europa, tem investido na expansão de uma rede de pontos de apoio, por meio de parcerias com lojas, em que consumidores podem receber suas encomendas ou deixar pedidos de troca, economizando tempo e frete. A empresa já conta com três mil desses pontos no país, incluindo as mais de 500 franquias.

“São iniciativas importantes, que ajudam a reduzir a ociosidade nas cadeias de suprimento”, afirma Pedro Moreira, presidente da Associação Brasileira de Logística (Abralog), que recentemente criou uma mentoria para ajudar os associados a implantar ações de ESG.

Fonte: https://valor.globo.com/empresas/noticia/2022/10/27/ofensiva-para-destravar-projetos.ghtml

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