Folha de S.Paulo – Infraestrutura está no topo das prioridades do terceiro mandato de Lula (PT). Tendo o Novo PAC como principal aposta, a promessa é de bilhões em investimentos para retomar obras paradas e inaugurar novos projetos. Mas a vitrine que o governo deseja construir traz no reflexo um problema do passado: concessões fracassadas que ainda aguardam soluções.
Uma série de rodovias, aeroportos e ferrovias que passaram a ser administrados pela iniciativa privada nos últimos anos está com problemas, o que inclui desequilíbrio financeiro, obras atrasadas e investimentos não realizados. São os chamados “contratos estressados”, no jargão do setor.
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Parte dessas concessões já está em processo de relicitação, que é a devolução amigável do ativo para que um novo leilão seja feito. No entanto, o governo quer evitar esse caminho e tem buscado resolver os imbróglios de forma alternativa, renegociando os contratos com os operadores para que eles permaneçam à frente dos negócios.
É que a relicitação tem se mostrado uma solução complexa e demorada. Desde que a lei foi aprovada, em 2017, apenas um ativo passou por esse processo: o aeroporto de Natal, em maio deste ano.
Outros terminais, rodovias e uma ferrovia entraram com o pedido nos últimos anos, mas o trâmite não foi concluído. Agora, o governo busca uma resolução consensual, na expectativa de destravar investimentos e evitar uma bomba-relógio, com vários ativos sendo devolvidos em série.
Fazem parte dessa lista os aeroportos do Galeão, no Rio de Janeiro, e de Viracopos, em Campinas (SP). Também estão em relicitação a ferrovia Rumo Malha Oeste, e cinco rodovias: Arteris Fluminense, Eco 101, MSVia, Via 040 e Concebra.
A situação mais grave está nas estradas. Das 24 rodovias federais administradas pela ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), cerca de 16 estão com contratos estressados. O número considera as cinco que estão em processo de devolução e outras 11 que são consideradas problemáticas —embora o Ministério dos Transportes não divulgue a lista completa.
Em junho, George Santoro, secretário-executivo da pasta, disse que 10 mil quilômetros de rodovias sob concessão estão com algum problema, seja de devolução pela concessionária, desequilíbrio nos contratos ou outra questão. O número é expressivo, visto que o Brasil tem hoje 13.023 quilômetros concedidos, segundo a ANTT.
Atualmente, o Ministério dos Transportes tem quatro grupos de trabalho para discutir soluções consensuais. O tema é considerado prioridade pela pasta, e a intenção é trazer os contratos para a regularidade.
Embora a repactuação de contratos já viesse sendo discutida pelo governo, essa alternativa só ganhou legitimidade jurídica nas últimas semanas, quando o TCU (Tribunal de Contas da União) permitiu que operadores podem desistir de devolver suas concessões.
Na prática, a decisão autorizou soluções alternativas para os contratos problemáticos caso haja consenso entre governo e empresas.
A aposta do governo é que resolver os problemas pela via consensual tem potencial para destravar investimentos no curto prazo. No caso das rodovias, por exemplo, o ministro dos Transportes, Renan Filho, fala em cerca de R$ 80 bilhões.
Rodovias federais em relicitação
Autopista Fluminense
- Concessionária: Arteris
- Extensão do trecho: 320 km
- Concedida em: 2008
- Prazo de concessão: 25 anos
- Devolução em*: março de 2024
Eco101
- Concessionária: Ecorodovias
- Extensão do trecho: 475,9 km
- Concedida em: 2013
- Prazo de concessão: 25 anos
- Devolução em*: prazo ainda não definido
MSVia
- Concessionária: CCR
- Extensão do trecho: 847,2 km
- Concedida em: 2014
- Prazo de concessão: 30 anos
- Devolução em*: março de 2025
Via040
- Concessionária: Invepar
- Extensão do trecho: 936,8 km
- Concedida em: 2014
- Prazo de concessão: 30 anos
- Devolução em*: agosto de 2023
Concebra
- Concessionária: Triunfo
- Extensão do trecho: 1.176,5 km
- Concedida em: 2014
- Prazo de concessão: 30 anos
- Devolução em*: novembro de 2023
*Considerando o novo prazo definido em contrato aditivo | Fonte: ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres)
Segundo Fernando Vernalha, advogado especialista em infraestrutura, uma das causas do desequilíbrio dessas concessões tem a ver com o próprio modelo dos contratos.
Ele explica que nos editais de concessão são feitos estudos de demanda, que servem de principal referência para o investidor. No caso de rodovias, por exemplo, estima-se fluxo de veículos, valor de tarifa e, com isso, uma projeção de receita.
“O problema é que esses estudos muitas vezes não se confirmam. Vários eventos mudam a realidade e isso muda a viabilidade econômica do contrato”, diz.
Foi o que aconteceu com os aeroportos do Galeão e de Viracopos, cujas demandas de carga e passageiros se mostraram muito inferior às estimadas nos estudos que instruíram a licitação.
Outro ponto que minou a receita dos operadores é a frustração com promessas contratuais. A concessão de Viracopos, por exemplo, previa a exploração imobiliária de áreas ao redor do terminal, mas apenas 20% do terreno foi entregue até hoje —11 anos após o leilão.
Giuseppe Giamundo Neto, advogado e especialista em contratos de infraestrutura, diz que Viracopos e Galeão são exemplos do que não se deve fazer em termos de concessão.
“Elas teriam de tudo para dar certo, porque são atraentes e com grande potencial, mas, em razão de estruturação e execução, acabaram não sendo viabilizadas.”
Vernalha também lembra que boa parte dos ativos estressados foi concedida à iniciativa privada durante o governo da presidente Dilma Rousseff (PT). No caso das estradas, a maioria foi leiloada na terceira etapa do programa de concessões, entre 2013 e 2015.
À exceção da Arteris Fluminense, todas as quatro rodovias em relicitação são dessa época.
De acordo com Marco Aurélio de Barcelos, diretor-presidente da ABCR (Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias), os trechos dessa etapa do programa previam investimentos “extremamente arrojados”.
“Falava-se em duplicação de ponta a ponta num curto espaço de tempo, isso também levava o fluxo de caixa desses projetos a ficar muito vulnerável às mudanças macroeconômicas. E elas chegaram”, afirma.
As mudanças a que Barcelos se refere vieram principalmente da crise iniciada em 2014.
“Foi a maior crise econômica que o Brasil já enfrentou desde o crash da Bolsa de 1929. Isso impactou de forma muito contundente as projeções de tráfego e houve, em razão disso, frustração de receita.”
Vernalha ainda destaca que, na época, os operadores tentaram mudar os contratos, já que não se tratava de uma oscilação normal da demanda. No entanto, o governo federal resistiu, e as concessões seguiram com problemas que se refletem até hoje.
Essa dificuldade em renegociar tem relação com o contexto político da época e com a Lava Jato. Inclusive, alguns dos grupos que arrecadaram ativos de infraestrutura na época entraram na mira da operação.
Um exemplo é a Odebrecht, que em 2013 ganhou o leilão da BR-163 em Mato Grosso. Sem fazer os investimentos exigidos e após descumprir outros termos do contrato, a companhia fechou acordo para devolver o trecho.
O processo se estendeu e acabou dando origem à primeira solução alternativa para contratos problemáticos: um acordo para transferência de controle acionário.
A empresa vendeu a concessão para o governo de Mato Grosso, que assumiu o trecho e se comprometeu a fazer investimento inicial de R$ 1,6 bilhão em obras.
O desfecho da BR-163 é considerado benchmarking (caso a se replicar) pelo setor rodoviário para resolver contratos desequilibrados.
CONCESSIONÁRIAS FICARAM SEM CRÉDITO
Mas o contexto político e a Operação Lava Jato também prejudicaram os contratos de concessão em relação ao financiamento.
Um executivo diretamente envolvido num dos contratos problemáticos disse à Folha que o governo exigia a cobrança de tarifas muito baixas para a exploração de trechos rodoviários.
Para garantir que isso seria sustentável financeiramente, os editais vinham com uma espécie de carta-promessa com condições vantajosas de financiamento por bancos públicos, especialmente o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).
Com a garantia de financiamento a juros mais baixos, o executivo conta que o negócio ganhava certo sentido econômico.
Em algumas concessões, o BNDES fez o chamado empréstimo-ponte —uma espécie de financiamento inicial— e as administradoras começaram a fazer os investimentos exigidos.
A maior parte dos recursos deveria ser liberada por volta de 2016. Mas, com a crise financeira e o impeachment de Dilma, os financiamentos pararam de chegar.
Após mudanças na estrutura e na atuação do BNDES —que começa a devolver recursos para o caixa do Tesouro—, alguns empréstimos foram suspensos, mesmo para financiamentos que já estavam aprovados pelo banco, conforme relato desse empresário.
Sem recursos, os grandes investimentos previstos são interrompidos, as concessionárias passam a acumular autos de infração, as receitas caem e os ativos vão se degradando. É o começo do “estágio de estresse”.
As empresas entraram, então, com pedido de relicitação e assinaram um termo aditivo de contrato, estabelecendo um novo prazo para seguir administrando.
A expectativa era que nesse período o governo fizesse estudos de modelagem e estabelecesse as condições para transferir os ativos a novas concessionárias.
Mas, desde então, só o aeroporto de Natal foi solucionado. Com o atraso, boa parte desses contratos aditivos está com prazo se esgotando sem que um leilão esteja à vista.
Foi o caso da Invepar que, a um dia de devolver a BR-040 para a União, foi obrigada pela Justiça a continuar administrando o trecho entre Juiz de Fora (MG) e Brasília até que uma nova licitação seja feita.
“O que aconteceu com a BR-040 é mais um indicativo de que o caminho da relicitação é muito problemático, cheio de obstáculos e ineficiências”, diz Vernalha.
O especialista acredita que a mesma situação pode acontecer com outras rodovias, o que aumenta a pressão sobre as autoridades, já que surge o risco de devoluções em série.
“O fato de haver relicitações numa etapa avançada do processo põe mais urgência para o governo em desenvolver as alternativas”, afirma.
OMO O GOVERNO QUER RESOLVER O PROBLEMA?
A solução que o Ministério dos Transportes vem buscando para economizar recursos e tempo é renegociar o contrato com o próprio operador.
“Há um ambiente favorável para que essas concessões em crises sejam resolvidas, Claro, tem muita coisa ainda para acontecer, não é simples, mas estão no caminho certo, e estão fazendo do jeito certo”, avalia.
Para algumas concessionárias, a repactuação dos contratos não chega a ser uma questão de interesse, mas a única e última opção, como relatou à Folha um executivo por trás de um dos contratos estressados.
Entre os pontos que ele considera importante de serem revistos estão: adiamento do prazo de concessão, alteração no cronograma de investimentos obrigatórios, revisão dos autos de infração aplicados e, principalmente, permissão para executar tarifas “condizentes com a realidade”.
Outro executivo também disse que os termos da repactuação precisarão ser estudados. Caso não sejam interessantes, a decisão de devolver o ativo à União será mantida.
Barcelos, da ABCR, diz que a repactuação não é uma panaceia, mas pondera que ela pode antecipar melhorias em um curtíssimo espaço de tempo. Enquanto o processo de uma nova licitação chega a se arrastar por cinco anos, um esforço consensual pode retomar investimentos no horizonte de seis meses, diz.
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