Estado de Minas – No início de janeiro, o Ministério dos Transportes confirmou que a Região Sudeste não tem trechos previstos na futura Política Nacional de Transporte Ferroviário de Passageiros (PNTFP). Com exceção do trem entre Belo Horizonte e Vitória, um dos dois únicos existentes no país, as antigas linhas que conectavam os mineiros foram desativadas ou destinadas ao transporte de cargas, entre elas a Estrada de Ferro Central do Brasil, a Estrada de Ferro Bahia e Minas e a Rede Mineira de Viação. Para resgatar as histórias dos viajantes de outros tempos e debater o futuro do transporte ferroviário, o Estado de Minas traça uma linha do tempo com os principais acontecimentos desse sistema no país, por meio de documentos históricos e entrevistas com antigos passageiros, associações, órgãos e especialistas da área.
“Nós chegamos a transportar 89 milhões de passageiros por ano, que viajavam de trem. Hoje, são 1,3 milhão. Um país deste tamanho, com dimensões continentais, só com duas linhas… Então, é um serviço praticamente inexistente”, avalia o presidente da Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos (ANPTrilhos), Joubert Flores.
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Ele destaca a importância do sistema ferroviário e compara com outros serviços de transporte existentes no país. “Hoje, a gente só consegue fazer viagens longas de avião, que são muito caras, ou de ônibus, que são muito perigosas e demoradas. Tem uma linha que para ir do Sul ao Nordeste leva uma semana, então foge à lógica que existe em vários lugares do mundo de as grandes distâncias terem viagens troncais e, depois, a capilaridade com os ônibus para os locais mais próximos”, explica.
A história do transporte que vai ficando cada vez mais distante dos brasileiros e especialmente dos mineiros remonta à primeira ferrovia do Brasil, inaugurada no Rio de Janeiro em 1858, por dom Pedro II. Mas foi somente no fim do século 19 que as linhas férreas começaram a se disseminar pelo país, com ramais em diferentes regiões e viagens interestaduais, a exemplo do trajeto de Belo Horizonte a São Paulo.
O número de passageiros transportados anualmente cresceu até 1960. Dali em diante caiu progressivamente, até quase se tornar nulo na década de 1990, com as concessões para o transporte de carga. Diante de poucas contrapartidas exigidas para manter o transporte de passageiros e sem fiscalização de contratos, as empresas foram gradativamente desativando trechos e abandonando estações.
“Nós tivemos duas grandes fases de descontinuação do transporte ferroviário de passageiros no Brasil. A primeira foi durante a ditadura, de 1964 a 1984, e, a segunda, com as concessões para transporte de carga para empresas privadas, de 1996 a 1999”, explica o professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Antônio Moreira de Faria, que trabalha com o tema desde o começo da década de 1990.
Para conversar com a equipe do Estado de Minas, ele chegou carregando mapas e exemplares do “Guia Levi”, publicação mensal que trazia os horários das linhas e ramais pelo Brasil, como os da Estrada de Ferro Leopoldina, que ligava a Zona da Mata mineira ao Rio de Janeiro. “O fim do transporte ferroviário de passageiros provocou uma concentração de pessoas em grandes cidades e isolou outros lugares”, ressaltou.
Quilômetros de mortes
Na falta de trilhos para transporte de pessoas, brasileiros que precisavam se deslocar migraram para as rodovias, aumentando drasticamente o número de acidentes e fatalidades. Em 2022, foram registrados 64.547 acidentes nas estradas brasileiras, com 18.132 feridos graves e 5.439 mortos, conforme o Anuário de 2022 da Política Rodoviária Federal (PRF). O documento também aponta que Minas Gerais lidera o ranking negativo dos estados brasileiros, com 8.290 acidentes, 2.524 feridos graves e 701 mortos. Já nas ferrovias, no mesmo período, foram 782 acidentes, com 237 feridos e 112 mortos, segundo o Anuário do Setor Ferroviário, feito pela ANTT.
Empresas ignoraram contrato e passageiros
O Estado de Minas teve acesso aos contratos assinados no fim da década de 1990 e que ainda estão em vigor, dentro do prazo de 30 anos. De acordo com o vigésimo tópico do item 9.1 (das obrigações da concessionária), é determinada a manutenção do transporte ferroviário de passageiros por parte das empresas. “Assegurar, a qualquer operador ferroviário, durante a vigência do presente contrato, a passagem de até dois pares de trens de passageiros, por dia, em trechos com densidade anual de tráfego mínima de 1.500.000 TKU/km”, detalha o documento. A sigla se refere ao transporte de tonelada de carga por quilômetro útil de ferrovia.
Mas esse não foi o único termo do contrato desrespeitado. Foram ignorados outros, como os que proibiam o abandono de linhas e trechos. Na prática, as empresas mantiveram somente as rotas úteis para levar cargas e matérias-primas para outros estados e portos.
“Em todos os contratos, de todas as malhas, havia a obrigação de oferecer pelo menos dois pares de trem por dia de passageiros, o que a gente chama de ‘janela’. Vamos dizer que fosse de BH para Montes Claros: um partindo daqui, outro vindo de lá. Um par de manhã e um par à noite. Mas isso nenhuma concessionária cumpriu. Na pré-concessão, inclusive, a rede ferroviária gastou uma boa grana para arrumar as linhas e fazer a privatização. Aí, vieram as empresas e largaram tudo”, ressalta o ex-analista técnico da CBTU Ubirajara Baía, engenheiro civil e mestre em transporte ferroviário de passageiros pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Restaram 2 linhas de trens de passageiros
Atualmente, o transporte ferroviário regular de passageiros no Brasil, com viagens diárias, ocorre somente em dois locais: na Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM), que tem 664 quilômetros de extensão, e na Estrada de Ferro Carajás (EFC), com 870 quilômetros, que liga Parauapebas, no Pará, a São Luís, no Maranhão. Já a prestação de serviços não regular e eventual, com finalidade turística e histórico-cultural, pode ser realizada por entidades públicas e privadas, mediante autorização da ANTT. “Além de Ouro Preto/Mariana (18 quilômetros) e São João del-Rei/Tiradentes (12,7 quilômetros), foram autorizados os trechos entre São Lourenço/Soledade de Minas (9 quilômetros) e Passa-quatro/Coronel Fulgêncio (10 quilômetros)”, explicou a agência federal.
Malha movimenta bilhões em cargas
A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) informa que a malha ferroviária nacional concedida e operacional tem 30.653 quilômetros de extensão. “Há 13 concessões ferroviárias em operação. Dessas, quatro (Rumo Malha Paulista, Estrada de Ferro Carajás, Estrada de Ferro Vitória/Minas e MRS Logística) tiveram contrato prorrogado, com a inclusão de investimentos obrigatórios em obras de capacidade e de solução de conflitos urbanos. Enquanto isso, a Rumo Malha Oeste está em fase de relicitação e três ferrovias estão em fase de construção para operação futura (Transnordestina Logística, Ferrovia de Integração Oeste-Leste e Ferrovia de Integração Centro-Oeste)”, informou.
As operações dessas concessionárias giram na casa dos milhões de toneladas e dos bilhões de reais. Conforme a Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF), o setor transportou 500,8 milhões de toneladas úteis (TU) de carga geral no país em 2022, sendo 359,1 milhões de minério de ferro. “Em mais de duas décadas de concessões, as associadas à ANTF apresentaram um crescimento de 98% na movimentação de cargas pelas ferrovias em relação a 1997 – época do início das concessões, quando foram movimentadas 253 milhões de toneladas úteis. O crescimento anual médio foi de 2,76%”, contabiliza a entidade. Ainda de acordo com a ANTF, a frota de material rodante aumentou de 1.154 unidades em 1997 para 3.100 em 2022, enquanto o número de vagões passou de 43.816 para 112.640 no mesmo período.
“O transporte de passageiros é muito falado, mas é difícil de concretizar. Nós temos hoje um modelo diferente do europeu, no qual o governo constrói a infraestrutura e concede a administração para o privado. No Brasil, não. Muitas vezes, o privado constrói e opera. Então, a administração da ferrovia é privada”, afirma o diretor do Departamento de Outorgas Ferroviárias da Secretaria Nacional de Transporte Ferroviário (SNTF), vinculada ao Ministério dos Transportes.
A declaração foi uma resposta a pergunta do Estado de Minas durante o seminário “Minas de volta à mobilidade”, organizado na última semana de janeiro pela Sociedade Mineira de Engenheiros (SME) com o intuito de debater os investimentos previstos para o setor ferroviário de cargas no novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
Entre 1990 e 1994, o engenheiro civil Ubirajara Baía, ex-analista técnico da CBTU que se tornou mestre em transporte ferroviário de passageiros pela UFRJ, aproveitou a estrutura da então Rede Ferroviária, no Rio de Janeiro, para se dedicar ao estudo do transporte ferroviário de pessoas em todo o Brasil. “Minha dissertação de mestrado foi justamente nesta área: estudar os trens de passageiros que existiam no país, com o recorte de um período de 25 anos a partir de 1965”, explica. De acordo com ele, seu foco foi o transporte de longo percurso, que se difere do transporte metropolitano de curta distância, antes integrados em um só sistema.
“O traçado das nossas ferrovias raramente foi modernizado, o que nós engenheiros chamamos de ‘retificar o traçado’. Nós temos praticamente traçados do século XIX, que foram feitos sem máquinas e caminhões. Já as novas ferrovias, como a do aço, têm um traçado de trem-bala, de alta velocidade, e a gente a utiliza para transportar minério. Isso são as mazelas das concessões que foram feitas”, analisa.
Ubirajara também estudou o aumento da gasolina e do óleo diesel, os números de trens e a quilometragem para entender os impactos de cada variável. “A conclusão foi de que mesmo havendo linhas extensas, de 600 quilômetros de distância, a maioria das pessoas pegava o trem para percorrer trechos menores. E a partir disso eu criei uma proposta de trens regionais”, afirma.
Perguntado sobre rotas que poderiam existir no estado, o engenheiro destaca uma que gostaria de ver de volta, mas com trens mais modernos, pois, segundo ele, os puxados por locomotivas são lentos, pesados e custosos. “Uma rota superimportante, que elevaria a imagem de Minas perante o mundo, seria Belo Horizonte a Ouro Preto. E tem a ferrovia toda, que está abandonada. Passa por trechos lindos – quase todos de mata – em paralelo ao Rio das Velhas. Passa por Sabará, Raposos, Nova Lima, Itabirito e vários distritos de Ouro Preto”, ressaltou.
A saudade do trem na arte de Milton e Brant
Em 1975, durante a ditadura militar que entre tantas mazelas também descarrilhou o transporte sobre trilhos no país, Milton Nascimento e Fernando Brant compuseram “Ponta de Areia”. A canção aborda as dores dos passageiros arrancados das ferrovias, ano após ano mais limitadas ao transporte de cargas e dominadas por empresas privadas. “Velho maquinista, com seu boné, lembra o povo alegre que vinha cortejar. […] Na praça vazia um grito, um ai. Casas esquecidas, viúvas nos portais”, descreve trecho da letra.
O lamento relata o cenário deixado pelos quase extintos carros de longa distância, que, repletos de gente, transportavam histórias pelos trilhos de ferro, depois suprimidos por trens de cargas e mercadorias consideradas de valor pelas companhias. Representa também a realidade de tantos municípios mineiros, como Moeda, na Região Central do estado, e Brumadinho, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, onde o Estado de Minas encontrou antigos passageiros e estações abandonadas.
“A ferrovia corta o coração da cidade e não nos dá nada em troca, pelo contrário. Rachaduras nas paredes, buzinas de madrugada… São dezenas de vagões, que às vezes passam vazios ou ficam parados aqui por horas. As empresas e mineradoras fazem o que querem”, reclama Renato, mais conhecido o “Chico” de Moeda, onde mora desde a infância junto ao comércio da rua principal, a poucos metros dos trilhos.
Em outra canção, “Barulho de trem”, Milton Nascimento descreve parte da rotina de tantos mineiros que iam até as estações “para ver o movimento”. E não só para olhar, como relata Ernani, do Bar do Raimundo, que fica em frente à Estação Ferroviária de Moeda. “Eu era pequeno e me lembro das pessoas vendendo ovo, galinha, todo tipo de comércio. A estação foi construída em 1919 e a cidade cresceu no entorno dela. Esta casa, na qual o bar está desde 1949, é da década de 1920, assim como outras da rua”, descreve.
O grande prédio da antiga estação, que completa 105 anos em 2024, está conservado por fora, mas de portas fechadas há alguns anos, desde que uma biblioteca criada pela prefeitura encerrou suas atividades. No entorno, uma fonte e pequenas áreas verdes dão um clima nostálgico ao local, que continua encorajando moradores a se sentarem por ali, seja de um lado ou do outro. “Antes, era tudo conectado, as pessoas de outras cidades se conheciam e se casavam por causa do trem. Aí, foram perdendo o vínculo. Agora, as mineradoras tomaram conta, ficam o dia inteiro transportando carga”, completou o filho do seu Raimundo.
Para tentar amenizar os impactos causados pelos trens de carga, o professor aposentado Ronaldo protocolou, no fim do ano passado, um pedido de audiência pública na Câmara Municipal de Moeda e no Ministério Público Federal, em Belo Horizonte. “A ideia é criar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para a empresa que administra a ferrovia. Entreguei os documentos e ainda estou aguardando uma resposta”, explicou.
Comunidade quilombola tem estação abandonada
A quase 10 quilômetros de Moeda, na antiga Estação Ferroviária de Marinhos, no distrito que pertence a Brumadinho, a realidade é ainda mais dura, como relata Nair de Fátima, uma das líderes da comunidade quilombola local. “Tivemos que pedir para que a empresa reduzisse o número de viagens à noite e molhasse o minério, pois ele seco voa para cá, poluindo e prejudicando a nossa saúde”, relata. Segundo ela, o impacto do trem atinge até as residências que ficam a algumas ruas de distância, danificando a estrutura e provocando rachaduras. Ao todo, são 96 casas no local, onde vivem cerca de 300 famílias.
A líder comunitária também se lembra com nostalgia dos tempos em que o trem transportava passageiros. “Eu pegava todo dia, para BH e para o centro de Brumadinho. Não tinha ônibus na época, e ainda hoje as estradas são ruins, de terra. Demora mais”, disse. Sentada na varanda de Antônio, antigo líder do Quilombo Marinhos, Nair relembra o movimento em frente à antiga estação, hoje inexistente, e com poucos imóveis no entorno – quase todos residenciais. “As pessoas subiam para ver o trem passar, para se reunir. Ali tinha um antigo armazém, hoje em ruínas depois de ser abandonado pelos proprietários”.
Tal como nas canções de Milton Nascimento, a música também trouxe à tona histórias das antigas ferrovias de passageiros enquanto a equipe do Estado de Minas conversava com Nair. Andando com a neta no colo e ouvindo um samba, seu Antônio e a nora contaram que o carnaval da comunidade acontecia na própria estação de Marinhos. “Subia todo mundo para lá, ficava cheio”, relata.
Hoje o antigo prédio, que aguarda autorização para ser revitalizado, resiste ao tempo acumulando agressões e cicatrizes: sem portas, com telhas quebradas, poças d’água, pichações, copos de plástico, pedaços de roupa e todo tipo de sujeira. Do lado de fora, placas quase apagadas mostram um número de telefone indisponível e os dizeres “Propriedade R.R.F.S.A”, referência à extinta Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima.
Iphan tem dever de zelar pelo patrimônio
De acordo com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a Lei 11.483 de 2007 atribuiu ao órgão a responsabilidade de administrar os bens móveis e imóveis de valor artístico, histórico e cultural oriundos da RFFSA, bem como zelar pela guarda e manutenção. “Desde então, o instituto avalia, dentre todo o espólio, quais são os bens detentores de valor histórico, artístico e cultural”, informa.
O Iphan explica ainda que o patrimônio ferroviário da RFFSA engloba desde as estações, armazéns, rotundas, terrenos e trechos de linha até o material rodante, como locomotivas, vagões, carros de passageiros, maquinário, além de mobiliários, relógios, sinos, telégrafos e acervos documentais. Conforme o inventário, são mais de 52 mil bens imóveis e 15 mil bens móveis, classificados como de valor histórico pelo Ministério dos Transportes.
Culpa de tudo isso: JK! Ele destruiu a ferrovia no Brasil com a criação da RFFSA.
Negativo, foi a política de prioridade do transporte rodoviário sobre o ferroviário que “matou” a ferrovia no Brasil.
Antes da década de 50 o modal rodoviario brasileiro era escasso, rarefeito. Enquanto que as nossas ferrovias (relativamente extensas) eram concessões privadas, controladas por empresas com fins lucrativos, e com um mínimo ou nenhum investimento em modernização e atualização tecnológica – toda a receita vinha das tarifas e, nesse contexto, viajar em trem não era exatamente barato.
Com a chegada das modernas rodovias, em um contexto de ferrovias saturadas e tecnicamente defasadas, não deu outra: Aonde deveria haver integração entre os modais, ocorreu exatamente o contrário – uma irracional concorrência entre estes mesmos modais, que atrasa o País até hoje.
Em todos os países com grandes redes ferroviárias é regra haver administrações e financiamentos públicos, mesmo aonde também operem grupos privados. Já que a contabilidade financeira de uma ferrovia obedece a padrões bem diferentes da tradicional fórmula “receita X lucro”.
Ferrovias eficientes exigem planejamentos de longo prazo, que transcendam governos e que contemplem todos os setores da sociedade e da economia (e não apenas a alguns grupos econômicos). E logicamente muito investimento público bem direcionado – pois isso demanda valores realmente elevados e que retornam somente no longo prazo (e portanto fora dos típicos padrões de investimentos exclusivamente privados).
Ou seja, ainda há muito por se fazer, muito mesmo, e pelo prazo de gerações.