Setores público e privado se movimentam por ferrovias

Valor Econômico – A crônica dependência brasileira do modal rodoviário desperdiça vidas em acidentes, polui a atmosfera e retarda o crescimento econômico. Desatar esse nó logístico é um desafio complexo, em função do alto custo dos projetos ferroviários e de seu longo prazo de maturação. Mas um sinal positivo é que os setores público e privado têm se articulado nesse sentido, via ajustes regulatórios e outras iniciativas. O governo prepara um plano nacional para o setor, com aporte público estimado em R$ 20 bilhões e a expectativa de gerar dez vezes mais recursos para investimentos. Mas especialistas alertam que é essencial ter boa governança dos projetos para evitar erros do passado, como o desperdício por mau planejamento e a descontinuidade das ações.

Apenas um quinto do transporte de cargas no Brasil hoje é realizado pelo modal ferroviário. Dos 30,6 mil quilômetros de trilhos existentes no país, pouco menos da metade está plenamente ativa, 14% têm baixíssima utilização e 37% estão sem uso, segundo a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Para enfrentar a ociosidade da malha e ampliar sua participação na matriz logística, a proposta governamental é aplicar recursos provenientes das renovações antecipadas das concessões.

O Ministério dos Transportes e a Vale estão em negociações “avançadas”, segundo a mineradora, para a revisão dos planos de investimento das estradas de ferro Carajás (EFC), corredor de exportação de grãos e minério do Pará e Maranhão até o porto de São Luís, e Vitória a Minas (EFVM), responsável por 30% do transporte de produtos por meio ferroviário do país. Esse acordo deve trazer mais de R$ 10 bilhões para financiar o plano, estima o ministério. Outras fontes de recursos devem ser o pagamento adicional da Rumo e da MRS por suas concessões.

“Finalmente, depois de décadas, a ferrovia está indo atrás da carga”, afirma o vice-presidente de regulação e sustentabilidade da Rumo, Guilherme Penin. A empresa planeja fazer uma “revolução no setor”, investindo até R$ 15 bilhões na construção de 750 quilômetros de malha ferroviária em Mato Grosso. O Estado do Centro-Oeste é estratégico para as exportações brasileiras, por fornecer 16% do volume mundial de grãos. Já há 160 quilômetros em obras, entre Rondonópolis e Primavera do Leste.

A Rumo conta com cinco concessões ferroviárias. Uma delas é a da Malha Paulista, principal conexão entre o Centro-Oeste e o porto de Santos. Esse contrato foi renegociado recentemente, o que irá representar o desembolso adicional de R$ 1,2 bilhão. Goiás e Tocantins também estão no mapa da empresa, que em 2019 obteve a concessão dos trechos central e sul da Ferrovia Norte-Sul, na qual investiu R$ 4 bilhões. As obras foram concluídas em junho do ano passado e os trechos já estão operando.

Com a MRS Logística, que opera em Minas Gerais, o governo também negocia a revisão da concessão, prorrogada em junho de 2022. A empresa informa que, desde a renovação, já investiu R$ 956 milhões e entregou 56 obras decorrentes dos investimentos obrigatórios. Para os próximos anos, o foco é a entrega de outras 600 iniciativas, “incluindo obras de mobilidade urbana para proporcionar mais segurança viária e uma operação mais eficiente e sustentável”.

Outra negociação em andamento é com a Ferrovia Centro Atlântica (FCA), concedida à VLI, que opera com cargas do agronegócio, siderurgia e mineração. De acordo com a companhia, a prorrogação por mais 30 anos aumentará em 46% o volume de cargas transportadas por seus trilhos. Quando a renovação for concluída, a expectativa é que o novo ciclo de investimentos alcance R$ 24 bilhões.

A Ultracargo, maior armazenadora de granéis líquidos do país, também está investindo em infraestrutura. A empresa projeta a construção de dois desvios ferroviários – em Paulínia e Santos (SP) – para facilitar a movimentação de combustíveis e químicos. Em Paulínia, a obra irá conectar as instalações operadas pela Opla a uma malha já existente, da Rumo, até o terminal da Ultracargo em Rondonópolis (MT). Em Santos, um ramal de 2,7 quilômetros interligará o terminal da empresa à malha ferroviária do município.

Uma alternativa para reduzir a ociosidade da malha é a autorização ferroviária, modalidade de exploração das estradas de ferro introduzida em 2021 pelo Marco Legal das Ferrovias. “Até o fim do ano, vamos regulamentar o chamamento público para oferecer ao mercado os trechos não operacionais de ferrovias”, informa o superintendente de transporte ferroviário da ANTT, Alessandro Baumgartner. Já existem 45 contratos de adesão à nova modalidade de outorga, com previsão de R$ 241,14 bilhões em investimentos em uma rede de 12,6 mil quilômetros. As principais requerentes são Rumo, Petrocity, Macro Desenvolvimento, 3G e VLI.

“O novo marco regulatório traz modernidade e cria condições para um transporte ferroviário mais equilibrado e integrado”, diz o presidente da Petrocity, José Roberto Barbosa da Silva. A empresa tem quatro projetos em fase de licenciamento ambiental, que somam R$ 20 bilhões: as ferrovias Juscelino Kubitschek, que liga o norte do Espírito Santo a Brasília; Planalto Central, de Brasília a Mara Rosa (GO); EF-A20, de Corumbá de Goiás a Anápolis (GO); e Minas-Espírito Santo.

Na visão do presidente do conselho da Associação Nacional das Ferrovias Autorizadas (Anfa), José Luis Vidal, o processo de autorização é uma ferramenta adicional importante para ampliar a malha ferroviária e que precisa ser utilizada como política de Estado. Para ele, em vez de criar barreiras de entrada, o foco deveria ser o estímulo do investimento privado.

“Vemos o novo marco legal com excelentes olhos, mas esperamos resultados”, diz a assessora técnica de logística e infraestrutura da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Elisangela Pereira Lopes. Ela lembra que já existem 25 contratos de autorização em licenciamento prévio e dois em desapropriação, mas nenhum quilômetro de ferrovia foi construído até agora por essa modalidade de outorga. “O crescimento anual da produção agrícola no Arco Norte é de dez milhões de toneladas, o que seria suficiente para viabilizar a construção de uma nova linha ferroviária por ano”, ressalta.

O diretor-presidente da Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF), Davi Barreto, destaca o valor recorde de investimentos no setor: R$ 10,4 bilhões em 2023 e projeções de R$ 45 bilhões até 2026: “Esperamos que o Plano Nacional de Ferrovias traga diretrizes claras e mecanismos eficazes para impulsionar esses aportes”. A ANTF defende as prorrogações antecipadas das concessões, a maior participação do poder público nos investimentos, a simplificação regulatória e a exploração de novas fontes de financiamento que considerem os benefícios ambientais do modal ferroviário.

Uma boa governança dos projetos é fundamental para evitar falhas e desperdícios, diz Cláudio Frischtak, presidente da consultoria de negócios Inter.B. Ele lembra que o Brasil tem um longo histórico de má alocação de recursos públicos em obras de infraestrutura. Em abril deste ano, segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), havia 11.994 obras paralisadas, o que corresponde a 52% das 22.961 obras financiadas pelo governo federal. Frischtak faz críticas enfáticas à Ferrogrão, uma linha férrea de 976 quilômetros de extensão, planejada para conectar Sinop (MT) a Miritituba (PA): “O projeto é precário e de altíssimo risco, com premissas de investimento, tarifa e retorno que não se sustentam e irão demandar recursos públicos numa escala que seria, na prática, uma obra pública travestida de concessão”.

O consultor estima que a ferrovia demandaria R$ 32,5 bilhões de recursos do Tesouro para se viabilizar. Também provocaria desmatamento em áreas sensíveis, prejuízos à biodiversidade amazônica e obstruiria a BR-163 ao longo dos anos de implantação, pois a rodovia deve ser usada como estrada de serviço. “Há muitos outros projetos de infraestrutura logística viáveis e mais atraentes para o agronegócio no Centro-Oeste”, opina. A Ferrogrão aguarda julgamento do Supremo Tribunal Federal quanto à legalidade do traçado, que impactaria o Parque Nacional do Jamanxim (PA).

Para o diretor da FGV Transportes, Marcus Quintella, o Plano Nacional de Ferrovias precisa ser uma política apartidária, que evite a descontinuidade e tenha visão sistêmica. “Ferrovias devem ser integradas a portos, rodovias e hidrovias”, assinala. “Também é preciso haver aporte significativo de recursos públicos, pois o setor privado não é filantrópico, só entra em projetos que deem resultados.”

Fonte: https://valor.globo.com/publicacoes/especiais/revista-infraestrutura-e-logistica/noticia/2024/11/14/setores-publico-e-privado-se-movimentam-por-ferrovias.ghtml

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