A discussão sobre o nível de interferência estatal na vida econômica e social dos cidadãos é um tema que tem ocupado os debates políticos há muitas décadas. E mesmo aqueles que defendem uma atuação mais intervencionista acabam concordando em um ponto: o Estado não é um bom gestor de recursos e, quando se presta a exercer uma atividade econômica, não atinge níveis de eficiência esperados. Por isso, a visão dominante na maioria dos países é de que o papel do Estado deve se restringir a setores econômicos estratégicos, à fiscalização das atividades exercidas pelos particulares (inclusive por meio de regulamentação) e ao estabelecimento de políticas públicas.
No Brasil, embora a nossa Constituição estabeleça que a política de desenvolvimento urbano tem o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais das cidades, a fim de garantir o bem-estar de seus habitantes, inclusive em relação ao transporte urbano, nota-se que as políticas públicas, quando presentes, são falhas.
POD NOS TRILHOS
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Em matéria de transporte urbano, nossas políticas sempre se pautaram por algum nível de incentivo ao transporte motorizado e individual (vide a cidade de Brasília, projetada para o transporte em automóvel). Isso resulta, particularmente nas grandes cidades, em problemas graves de mobilidade, causados também pelo excesso de veículos e pela falta de infraestrutura adequada, gerando perda de eficiência e enorme prejuízo para os cidadãos e para as empresas.
O surgimento das empresas de tecnologia voltadas para a mobilidade urbana mostrou, porém, com quantas disrupções se produz uma boa política pública. Com um alto grau de eficiência, e ainda sem as amarras da regulamentação estatal, as empresas de transporte por aplicativo introduziram uma nova era de mobilidade urbana no Brasil. Embora a nossa legislação ainda tente forçar os municípios a introduzir formalmente suas Políticas de Mobilidade Urbana (Lei Federal 12.587/2012) – uma diretriz que, se não for obedecida, restringirá o repasse de recursos do orçamento da União para os Municípios -, essa exigência vem sendo reiteradamente postergada (a recente MP 906/2019 adiou pela segunda vez o prazo, agora fixado para abril de 2021). Enquanto isso, as empresas passaram a oferecer soluções de mobilidade pautando-se no critério que afeta de forma mais rígida a atividade de prestação de serviços: a satisfação do usuário e a avaliação da qualidade do serviço.
Hoje há uma concepção clara de que essas empresas têm um papel tão ou mais importante do que o próprio Estado em termos de políticas públicas voltadas para os serviços de transporte. Ocorre que, mesmo em tempos de flexibilização de leis trabalhistas e reafirmação das normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica – leia-se Declaração de Direitos de Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019) -, as empresas de mobilidade urbana ainda enfrentam inúmeros desafios de caráter regulatório, tributário e trabalhista no Brasil, com um nível de litigiosidade que resulta em aumento de custos e desestímulo a novos investimentos.
Em termos de regulamentação, após um período de instabilidade jurídica no qual muitos municípios tentaram proibir o exercício da atividade dos aplicativos de transporte, a Lei Federal 13.640/2018 finalmente introduziu a figura do transporte remunerado privado individual de passageiros, atribuindo às cidades a competência para regulamentar e fiscalizar essa atividade. Em que pese essa norma represente uma boa notícia para o setor, o que se viu na sequência foi um exercício abusivo do poder regulatório pelos municípios, cujas legislações extrapolam os limites da lei federal. Além disso, a regulamentação municipal foi utilizada como subterfúgio para a criação de taxas sem respaldo jurídico claro.
O setor de mobilidade urbana obteve uma vitória importante em maio de 2019, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou o Recurso Extraordinário (RE) 1.054.110 e decidiu que são inconstitucionais as leis que restringem ou proíbem a atividade de transporte individual de passageiros por meio de aplicativos. Na mesma ocasião, o STF determinou que, no exercício de sua competência para a regulamentação do transporte privado individual de passageiros, as cidades não podem contrariar a lei federal.
A posição clara do STF, porém, não foi suficiente para afastar a pretensão dos municípios de criar restrições indevidas ao exercício dessa atividade, contrariando a Lei 13.640/2018. Exemplo dessa prática é o litígio, recentemente divulgado na mídia, acerca da exigência de inspeção obrigatória para os automóveis de motoristas de aplicativo, a qual foi considerada inconstitucional em decisão, ainda em caráter liminar, proferida pela 15ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo.
Na esfera tributária, os desafios também são relevantes. Diante da peculiaridade do serviço de intermediação por aplicativos, que é realizado essencialmente de forma remota, muitas prefeituras de cidades onde os aplicativos são disponibilizados têm lavrado autos de infração para a cobrança do ISS, ainda que a empresa não tenha qualquer base fixa de negócios naquela localidade.
Ocorre que a legislação prevê, como regra, que o ISS deve ser recolhido no local do estabelecimento prestador do serviço e, na maior parte dos casos, tais empresas estão localizadas no Município de São Paulo.
Atualmente, há um projeto de lei complementar que pretende alterar a legislação a fim de permitir que o ISS possa ser recolhido em favor do município onde acontece a corrida (PLC 521/18). Mas a discussão sobre a justa distribuição da receita do ISS entre as prefeituras não deve ser partilhada com os aplicativos de transporte: na ausência de uma alteração legislativa concreta, não existe fundamento jurídico para que cada município passe a exigir o imposto, sob pena de múltipla tributação de um mesmo serviço de intermediação.
Outra preocupação relevante no campo tributário é a frequente criação de taxas pelas prefeituras, usualmente impostas aos aplicativos de transporte como condição para o exercício de sua atividade. Esse tipo de cobrança se dá em diversos municípios, inclusive em São Paulo, mas a sua validade jurídica tem sido rechaçada pelos tribunais. Em abril de 2019, o Tribunal de Justiça de São Paulo julgou inconstitucional a lei de Campinas que impôs, aos aplicativos de transporte, uma cobrança sobre o valor das corridas realizadas naquela cidade.
Na ocasião, o TJSP destacou a impossibilidade de cobrança de contribuição pecuniária como condição para o uso do sistema viário, além de enfatizar que uma taxa somente poderia ser cobrada caso houvesse uma prestação de serviço público pela Prefeitura ou alguma atividade fiscalizatória. A questão deverá ser submetida aos Tribunais superiores e, enquanto isso, inúmeros litígios continuam em andamento no Brasil sobre esse tema.
Além das disputas de caráter regulatório e tributário, talvez a questão mais relevante para o segmento de mobilidade urbana – que se estende também a outras empresas de tecnologia – diz respeito à discussão sobre o suposto vínculo trabalhista entre os motoristas e os aplicativos de transporte. Mesmo para aqueles que não são especialistas na matéria, parece evidente que a relação jurídica não é de natureza empregatícia. Afinal, o valor da corrida paga pelo usuário é atribuído ao próprio motorista, que concorda em transferir parte do montante recebido para o aplicativo, como contraprestação pelo serviço de intermediação.
O fato de os aplicativos atuarem como plataformas tecnológicas para viabilizar a ligação entre os motoristas e os usuários – além de facilitadores de pagamento – não altera a natureza jurídica dessa relação, que é de caráter civil. O motorista atua com independência para utilizar ou não a plataforma, sem qualquer exclusividade. Não há, portanto, o elemento de onerosidade inerente à relação de emprego. Além disso, como os motoristas podem optar livremente pelo uso dos aplicativos, sem estarem vinculados a horários pré-determinados, não se identificam os elementos de subordinação ou de habitualidade típicos de um contrato de trabalho.
Não é por acaso que a grande maioria das decisões proferidas pelos tribunais no Brasil afastam a caracterização de vínculo empregatício, embora existam posições esparsas que divergem desse entendimento, como noticiam os veículos de comunicação de tempo em tempo. Alguns juízes ainda se apegam ao discurso de que os motoristas exercem um subemprego e de que os aplicativos estariam praticando um dumping social, provocando desequilíbrio no mercado por meio de uma vantagem comparativa para si em relação às demais empresas de transporte.
Essa concepção incorreta acaba sendo influenciada por uma circunstância específica do Brasil: até que o período de instabilidade econômica seja superado, a opção por funções menos técnicas e de menor remuneração acabam relevando-se como única alternativa viável para a grande massa de pessoas desempregadas. Tal circunstância, porém, não pode afetar a avaliação da questão sob a ótica jurídica: inexistindo subordinação na relação, não são aplicáveis os direitos e obrigações que regem uma relação típica de emprego.
Esses conflitos que afetam de forma tão direta o setor de mobilidade urbana (aplicativos de transporte) agora também estão criando entraves ao setor de micromobilidade (patinetes, bicicletas elétricas etc.), que também se mostram importantes ferramentas para melhorar o transporte nas grandes cidades. Muitos Municípios, a pretexto de regulamentar essas atividades, estão introduzindo exigências indevidas e fixando cobranças como condição para que as empresas operem, ferindo novamente os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência.
Não é preciso dizer que um cenário de insegurança jurídica, incerteza sobre políticas públicas e excesso de litigiosidade representa tudo aquilo que o investidor menos deseja. É fundamental, portanto, que não apenas o Governo Federal, mas também os próprios órgãos municipais, passem a trabalhar em favor da população, melhorando as condições de negócio, eliminando entraves e incertezas para aqueles que querem investir no país.
Para o setor de mobilidade urbana, as prefeituras precisam fixar políticas públicas claras, respeitar as diretrizes fixadas pelo Poder Judiciário e, acima de tudo, trabalhar em favor da melhoria dos serviços de transporte como um todo, ainda que isso signifique simplesmente interferir menos na atividade das empresas.
*Ricardo Maitto é mestre em Direito pela USP. Sócio na área tributária de Rayes & Fagundes Advogados
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