Transiberiana:
As ‘ferromoças’ dão as ordens, sem paciência e nem inglês
27-06-18 – O
Globo
POD NOS TRILHOS
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O Globo –
Como lidar com as ‘provodnitsas’? Companheiros de viagem e pontualidade evitam
roubadas
Provodnitsa.
Nada me atormentava mais antes da viagem do que essa palavra. E nem era pela
dificuldade de pronunciar ou escrever. Provodnitsa: a mulher responsável por
tomar conta, com rigor quase militar, de cada vagão dos trens da Rússia. Uma
espécie de “ferromoça”, mas sem aquele sorriso educado dispensado pela
comissária de bordo enquanto oferece uma barrinha de cereais. As provodnitsas apareceram
citadas com destaque em todas as pesquisas que fiz antes da viagem. Eram
rigorosas. Mais mal-humoradas que os garçons do Bar Lagoa. Só falavam russo.
Comiam criancinhas no café da manhã e ursos panda no jantar. Eram ex-agentes da
KGB.
Foi assim,
com o rabo entre as pernas, que iniciei esta Jornada Transiberiana. E não
precisei de mais do que cinco minutos para acabar com qualquer traço de
paciência e bom humor que a provodnitsa do meu vagão tinha. O trem nem havia
deixado a plataforma, e ela veio na minha direção, firme e decidida. Disparou
duas ou três perguntas em russo. Peguei o celular, abri o aplicativo de
tradução e pedi para ela repetir. O aplicativo me deixou na mão, e a tradução
saiu completamente sem sentido. Fiz cara de paisagem, e ela bufou. Entrou então
em cena um companheiro de cabine, um senhor na casa dos 60 anos, de terno,
gravata e longos cabelos brancos, tipo Pedro de Lara. Sem falar uma palavra,
alcançou-me um cardápio e deu a entender que a provodnitsa queria saber qual
prato eu queria comer no serviço de bordo. Fiz minha escolha, e a pressão dela
(e a minha também) baixou de 18/10 para 12/8. Ufa!
Não havia
acabado. Um minuto depois, ela voltou e fez mais uma pergunta. Eu ainda tentava
entender a questão quando ela deu uma revirada de olhos que me fez ter vontade
de saltar pela janela direto para os trilhos. Fui salvo por outro russo, que
conseguiu me explicar a dúvida: se eu queria meu prato como jantar ou café da
manhã. Ufa de novo!
Essa primeira
experiência apresentou ao mesmo tempo duas características marcantes da
transiberiana: a seriedade (e pouca paciência) das provodnitsas e a
hospitalidade dos russos. É claro que a língua é uma enorme barreira, mas, na
base do gestual, as relações se estabelecem dentro do vagão. Uma água oferecida
aqui, um chocolate aceito acolá, enquanto o trem avança decidido noite adentro.
A paisagem no início da jornada ainda é pouco atraente, e o movimento de
composições chama a atenção. A todo o momento passam trens de passageiros e de
carga. A Rússia é um país que soube traçar sua expansão sobre trilhos.
Um parêntese
importante: nem todas as provodnitsas são turronas. Dia desses eu esperava para
embarcar, já em frente ao meu vagão, quando a “ferromoça” me olhou, deu um
semissorriso (um sorriso inteiro já seria demais) e perguntou: “Renato?”. Fosse
isso um conto de fadas, eu poderia pensar que ela era uma fã que vem
acompanhando os textos da Jornada Transiberiana. A realidade é mais pragmática:
elas possuem uma maquininha sempre à mão, com os dados de cada passageiro que
embarca. Por alguma razão, ela já havia conferido e decorado meu nome.
Eficiência, teu nome é trem russo.
As
composições têm três classes: a primeira, com duas pessoas em cada cabine; a
segunda, chamada de kupe, com quatro pessoas por cabine, dispostas em dois
beliches; e a terceira, a platskart, onde as cabines são abertas, com 54
pessoas por vagão e dois banheiros, um em cada extremidade. Apesar de estreito,
o beliche é confortável. Dormir, porém, não é tarefa simples. O ar-condicionado
nem sempre dá vazão, as cortinas não são páreo para as claras madrugadas, e às
4h o espaço já está iluminado e quente. Na platskart, a cama é um pouco menor.
Com meu 1,75m, não sou exatamente alto, mas meus pés já ficam quase para fora
da cama, no meio do estreito corredor. É preciso disposição para encarar a
jornada.
Cada
passageiro recebe da comissária um kit com roupa de cama e toalha de rosto.
Além disso, elas são responsáveis por manter o samovar, um reservatório de água
quente para que o viajante prepare seu chá — uma mania nacional. A provenidtsa
vende lanches, dá uma geral na cabine — até aspirador de pó ela passa — e é
encarregada de avisar ao passageiro alguns bons minutos antes de seu destino.
Não é pouca tarefa. E ainda vamos exigir bom humor?
A diferença
entre cabine aberta e fechada se manifesta visivelmente no comportamento dos
passageiros. Na segunda classe, tendem a permanecer mais em suas cabines, lendo
ou tentando dormir. O vagão da terceira classe dá a impressão de bagunçado, mas
aquela bagunça boa de almoço de família no domingo. Crianças correm para lá e
para cá, outras passam o tempo desenhando, enquanto senhoras fazem palavras
cruzadas e conversam.
Um jovem
casal russo alegra-se ao descobrir que tem um brasileiro como companheiro na
terceira classe. Valery e Marina estão viajando de Moscou até Novosibirsk — 48
horas no trem. A mulher praticamente não entende inglês, mas o marido fala bem
e puxa assunto. Traduzindo quase tudo para Marina, Valery conta que venho do
Rio de Janeiro. “Carnaval!”, exclama ela. Antes tímida e agora empolgada, a
russa começa a enumerar sua lista de brasileiros famosos: Giovanna Antonelli,
Murilo Benício, Vera Fischer. Nossas novelas fazem sucesso por aqui, e “O
clone” é até hoje lembrada como um arrasa-quarteirão.
Dependendo
da rota, os trens fazem paradas curtas, de dois a quatro minutos, ou longas,
que podem chegar a uma hora, em estações no meio do caminho. É a chance de
descer, esticar as pernas e até comprar algo. As plataformas ficam tomadas de
vendedores, oferecendo desde echarpes a bolinhos russos, passando por peixe
seco defumado, um clássico da transiberiana. Quem desce, porém, tem que ficar
esperto. Os trens são extremamente pontuais. Se a saída está programada para 11h31min,
ele sai às 11h31min, com ou sem você. E ninguém quer ser deixado para trás no
meio da Sibéria, sem bagagem.
O trem volta
a andar, e o visual é de casas precárias, no subúrbio de uma cidade. “Essa é a
Rússia real”, me diz Valery:
— Moscou e
São Petersburgo são muito bonitas, mas são quase como outro país. Muita gente
com muito dinheiro. É muita desigualdade.
O clima
melancólico na cabine é quebrado por Marina:
— No Brasil
vocês têm praias de nudismo?
Pano rápido.
Segue a viagem.
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