Impulso ferroviário e regulação excessiva

José Serra, senador

 A história ferroviária do Brasil é um inventário de grandes
oportunidades perdidas. E o resultado desse erro histórico é visível por toda
parte. A dimensão de nossa rede de ferrovias e o volume transportado estão
muito aquém da dimensão da economia brasileira. Sétima economia do mundo, o
Brasil está na 88.ª colocação no ranking internacional de qualidade da
infraestrutura ferroviária.

Nossas ferrovias transportam esquálidos 15% das cargas
nacionais (em toneladas por quilômetro útil) – proporção semelhante à que
prevalecia em meados da década de 1990. Em extensão de trilhos ativos,
retrocedemos aos níveis do começo do século 20, apesar dos avanços em
produtividade e segurança das concessões ferroviárias atuais.

No transporte urbano de passageiros, a participação do modo
ferroviário é também pequena – quadro imperdoável para um país tão urbanizado.
Nossas grandes cidades sofrem com engarrafamentos que asfixiam sua
produtividade e castigam o morador da periferia. No transporte de passageiros
interurbano, é quase total nossa dependência do modo rodoviário.

Parte do nosso atraso ferroviário se deve, é óbvio, à falta
de investimentos públicos no setor, mesmo quando se somam as concessões ao
setor privado. Temos apenas 20 mil km de ferrovias ativas, 51,5 mil km ainda
estão nas planilhas de projeto e outros 8,5 mil km jazem abandonados entre a
ferrugem e o capim.

É preciso expandir nosso parque ferroviário, para carga e
passageiros. Um modelo plausível seria preservar a presença estatal nos
segmentos em que seja de fato necessária e, ao mesmo tempo, impulsionar
investimentos privados em regime de simples autorização, quando houver interesse
do mercado. O regime de autorização, menos complicado e mais seguro para o
investidor, pode deslanchar nosso potencial ferroviário, abandonando-se as
amarras e os exageros regulatórios e burocráticos que retardam o avanço da
nossa infraestrutura e não têm justificativa econômica ou jurídica. Em alguns
casos, derivados do pseudonacionalismo; em outros, de análises microeconômicas
que dão muito peso a falhas de mercado e nenhum peso às falhas de regulação.

No modelo de autorização, o investidor retém o patrimônio,
sem compromisso de devolução ao poder público, que, em contrapartida, não faz
gastos nem assume nenhuma coobrigação. A experiência bem-sucedida dos Estados
Unidos na adoção do modelo de autorização é muito instrutiva. Só no mercado de
transporte de cargas, 574 empresas ferroviárias atuavam em 2015 em regime de
exploração privada de 223 mil km de linhas ativas, com receitas anuais de US$
72 bilhões. Lá o poder público atua primordialmente no mercado de passageiros.

É essencial dotar o Brasil de um marco regulatório e legal
capaz de incorporar as melhores práticas disponíveis no cenário internacional
em matéria de transporte ferroviário. Abandonemos a tentação de reinventar a
roda. É possível aproveitar o que há de mais bem-sucedido, seja na legislação
nacional em outras áreas de infraestrutura, seja na experiência bem-sucedida de
outros países.

Na verdade, podemos começar adaptando dispositivos já
presentes no arcabouço jurídico nacional, a exemplo das leis que atraíram
investimentos privados para os serviços de telecomunicações e levaram à
expansão e popularização da telefonia móvel – fruto, aliás, da imensa
capacidade de trabalho de Sérgio Motta, que nos deixou há 20 anos. Também
podemos aproveitar elementos da legislação que disciplina o Operador Nacional
do Sistema Elétrico.

O ideal é que o investidor privado seja autorizado pelo
poder público a construir e operar sua própria ferrovia. Num país em que as
rodovias são ubíquas, não se deve temer o risco de monopólio natural de novas
ferrovias: não há rincão do Brasil em que as ferrovias não enfrentarão como
teto de preços o custo do transporte rodoviário.

Quanto aos trens de passageiros, ainda prevalece o mito de
que são sempre antieconômicos, só se tornando viáveis com pesados subsídios
estatais. No entanto, a realidade pode ser diferente. As experiências japonesa
e norte-americana mostram que a exploração imobiliária do entorno das estações
permite a sobrevivência de serviços de transporte de passageiros integralmente
privados.

Mais ainda, é possível criar instrumentos urbanísticos que
incentivem novas linhas. Um deles é o reparcelamento (land adjustement),
expediente comum em países asiáticos, pelo qual imóveis antigos são
substituídos por novos, mais adequados ao empreendimento ferroviário.

Guardadas as óbvias diferenças, vivemos hoje uma situação
algo semelhante à dos Estados Unidos em 1980, quando não dispunham de um marco
regulatório favorável a novos investimentos privados na rede ferroviária. A
paralisia foi superada pelo Staggers Rail Act – um novo marco legal, mais
flexível, menos intervencionista e lastreado em autorizações -, responsável
pelo notável incremento da produtividade e do volume transportado nas
ferrovias, concomitante à redução de tarifas.

É recomendável, no Brasil, abrir ao investidor privado a
possibilidade de construir com recursos próprios e explorar ferrovias mediante
simples autorização do poder público. Temos de dar às empresas ferroviárias –
às existentes e às que certamente entrarão no mercado – liberdade para a proposição
do traçado das linhas, de preços, níveis de serviço e suas especificações. No
caso dos portos privados, por exemplo, a possibilidade de construção de linhas
férreas aumentaria em muito a eficiência do setor, acirrando a competição entre
os portos e reduzindo o custo dos fretes. Uma forma quase instantânea de
reduzir parte do proverbial custo Brasil.

Proposta legislativa nesse sentido já está tramitando
rapidamente. Que os barbantes da regulação excessiva não sejam capazes de
segurar o impulso irresistível desse novo modelo ferroviário.

 

*JOSÉ SERRA, SENADOR (PSDB-SP)


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