Folha de S. Paulo (Coluna) – A pandemia da Covid-19 agravou uma série de problemas que já estavam presentes nas cidades, como aumento da população em situação de rua, talvez a alteração mais visível aos olhos da população.
Mas os impactos são sérios em vários setores e um dos mais graves é a forte crise que atravessa o setor dos transporte coletivos. A situação requer a formulação de um novo modelo de gestão e financiamento do setor, mas a inépcia do governo Bolsonaro não dá esperança de que isso poderá ser feito antes de 2022.
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A radiografia da crise está feita. O isolamento social gerou uma forte queda no número de passageiros no transporte coletivo, levando a uma acentuada queda na arrecadação das empresas de transporte coletivo, agravando um processo que já era sentido anteriormente.
Em consequência, existe um forte risco de apagão da mobilidade, com a desorganização total do sistema de transporte coletivo.
Em várias cidades as empresas têm abandonado as operações, obrigando as prefeituras a assumirem o serviço em caráter emergencial ou a deixarem as pessoas sem transporte coletivo. Em outras, as empresas têm exigidos aumentos de tarifa, que na imensa maioria dos municípios é a única fonte de receita. Mas a capacidade de pagamento da tarifa pelo usuário é limitada.
De acordo com o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), que fez um levantamento em todo o país, além do abandono do serviço, tem ocorrido uma onda de greves, visto que muitas empresas não têm cumprido suas obrigações trabalhistas e à abertura de CPIs, já em curso em 14 municípios, como Belo Horizonte e Teresina.
De acordo com Rafael Calabria, coordenador do Programa de Mobilidade Urbana do Idec, “são cada vez mais numerosos os casos de suspensão do serviço de transporte coletivo, redução de frota, greves de funcionários e aumentos de tarifas. Essa discussão tem ficado restrita a cada município. Mas trata-se de um problema nacional e estrutural, que vem de muito tempo e se acentuou com a pandemia”.
O problema é ainda mais grave pois é notória a existência de um cartel atuando no setor, o que torna polêmico qualquer auxílio ao sistema. Mas, nesse momento, apoiar o setor tornou-se indispensável para evitar que o sistema se desorganize inteiramente.
O serviço de ônibus vem sendo questionado há vários anos, devido à falta de transparência e irregularidades sobre o cálculo das tarifas, descumprimento dos contratos de concessão e péssima qualidade do serviço.
Com a chegada da pandemia esses problemas se aprofundaram. De acordo com Calabria, “a piora dos serviços foi acompanhada de propostas de aumentos de tarifa ou de subsídios, o que levou muitas câmaras municipais a criarem CPIs a fim de investigar os custos e lucros das empresas concessionárias no período”.
O problema não se limita aos ônibus. No Rio de Janeiro, a SuperVia, concessionária dos trens urbanos, entrou em junho com um pedido de recuperação judicial para dar continuidade aos serviços enquanto negocia com os credores e o governo formas de superar a sua crise financeira.
Desde março de 2020, a SuperVia acumula uma perda financeira de mais de R$ 500 milhões. Antes da pandemia, a concessionária transportava 600 mil passageiros/dia; nesse ano, o fluxo diário se estabilizou em 300 mil passageiros/dia. A empresa prevê recuperar o mesmo patamar de passageiros apenas em 2023.
Mas nada garante que o fluxo de passageiros seja inteiramente recuperado. Agravado pela pandemia, há fortes indícios de que o desequilíbrio do sistema é estrutural.
Como escrevi no artigo “Saiba quais serão os impactos da pandemia no futuro das cidades”, muitas das alterações urbanas geradas ou aprofundadas pelo isolamento irão permanecer após o retorno à normalidade, o que requer novas estratégias para ser enfrentados, pois a pandemia deverá deixar marcas definitivas nas cidades.
É certo que ocorreu uma queda acentuada do número de passageiros do sistema de transporte coletivo em decorrência da redução da atividade econômica. Mas é necessário observar que ele já vinha ocorrendo anteriormente em função, entre outros aspectos, da concorrência dos aplicativos e da incapacidade da população pagar a tarifa.
De acordo como a Associação Nacional de Empresa de Transportes Urbanos (NTU), no período anterior à pandemia, entre 2013 e 2019, a queda do número de passageiros por ônibus foi de cerca de 26% (de aproximadamente 380 milhões/mês para 280 milhões/mês, tomando por base o mês de abril).
A tendência é esse processo se acentuar no pós-pandemia, tanto devido a permanência do home office como ao receio de se utilizar transporte coletivo, onde o risco de transmissão do vírus, que ainda circulará por vários anos, é maior.
Esse fenômeno já pode ser observado em São Paulo. Mesmo com o avanço da vacinação e a volta à atividade econômica normal, os usuários que têm alternativas têm evitado o uso do transporte coletivo.
Segundo a Secretaria de Mobilidade e Trânsito (SMT), em setembro, o número de passageiros por dia que utilizam ônibus na capital corresponde a 65% da demanda registrada antes da pandemia. Ainda assim, nos horários de pico, a superlotação dos ônibus continua forte, apesar de 88,4% da frota estar circulando.
São Paulo é uma das poucas cidades que subsidia a tarifa. Desde 2018, o subsídio anual bancado pela prefeitura tem ficado em torno de R$3,2 bilhões, cerca de 5% do orçamento municipal. Sem esse subsídio, calcula-se que a tarifa seria R$ 7,60, valor insuportável para a população.
Esses números dão uma boa ideia das dificuldades de se manter o sistema de transporte coletivo regular, organizado e garantindo as gratuidades previstas em lei.
Um dos principais problema do transporte no Brasil está no financiamento do sistema, baseada, em geral, na tarifa paga pelo usuário. A remuneração das empresas não é calculada no custo real da operação do sistema, mas no número de passageiros transportados.
Trata-se de um problema estrutural, que precisa ser encarado por uma política nacional de mobilidade, que formulasse um novo modelo de concessão, com outras fontes de financiamento e outras fórmulas de cálculo da tarifa, com mais transparência e interesse público.
Em diversos países, os governos federais têm apoiado as cidades para garantir o funcionamento regular do setor. No Brasil, projeto de lei aprovado pelo Congresso neste sentido, que exigia das prefeituras importantes contrapartidas para melhorar o serviço, foi vetado por Bolsonaro.
Em consequência, o risco de apagão no serviço de transporte coletivo é real, o que significa a barbárie na mobilidade urbana. Só mais uma barbárie em um país que acumula problemas sem solução à vista.
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