Viagem insólita nos trilhos do acaso: o início do fim do Trem do Pantanal

“Viagem
insólita nos trilhos do acaso.”Assim, de maneira direta, o Correio do
Estado levou às bancas no dia 28 de agosto de 1985 reportagem especial de
Levindo Ferreira de Barros, com fotos de Vilson Galvão, onde escancarou a
problemática situação da então Noroeste do Brasil, ou, como ficou mundialmente
conhecido, o Trem do Pantanal, que completará 104 anos neste 2018 sem
passageiros e com trechos abandonados, consequência da forma como o descaso
mostrado naquela ocasião previa caminhar: o abandono total do transporte de
passageiros por trilhos em Mato Grosso do Sul.

“NOB
(sigla pela qual era chamada a Noroeste): ontem, servindo como fator de
integração nacional. Hoje, entregue à ação depredatória dos irracionais. O
sul-matogrossense (sic) não deseja lamentar que o trem que atravessa o pantanal
(sic) ‘é apenas um retrato na parede'”, como diz o poeta mineiro Drumond
de Andrade. Mas se não houver uma efetiva participação da classe política, do
Ministério dos Transportes e dos diversos setores da sociedade civil, Mato
Grosso do Sul certamente será um Estado sem memória, pois parte da sua história
está se perdendo nos trilhos que unem Bauru (SP) a Corumbá (MS), na fronteira
do Brasil com a Bolívia.”

De acordo
com o texto, a reportagem viajou por dez horas os 460 quilômetros de Campo
Grande até a Cidade Branca, ida e volta, no dia 17 daquele mês, um sábado.

Em 1985, o
fluxo tinha em média 6 mil passageiros em cada um dos oito trens diários que
eram oferecidos e eram descritos como “a principal integração do Centro-Oeste
com o Sul do País”, visto que a BR-262, que liga Corumbá a Três Lagoas e
às divisas com São Paulo, Goiás e Minas Gerais não havia sido totalmente
concluída. “Trechos de terra, esburacados, quebram veículos que se
arriscam na viagem pouco indicada, deixando os motoristas alvos fáceis de
animais selvagens”, cita uma reportagem do próprio Correio dois meses
antes.

A
necessidade e a grande procura dos passageiros pelo Trem do Pantanal, segundo o
texto, não motivaram investimentos dos responsáveis. No relato, os vagões de
madeira ainda eram os mesmos de 40 anos atrás, com as estações, na própria
Capital e nas cidades do interior, abandonadas e descaracterizadas pela ação do
tempo.

O
crescimento de demanda para uma oferta tão pequena de lotação não poderia gerar
outra coisa senão empurra-empurra no embarque, com uma descrição que assusta
pela realidade crua da reportagem.

“A
disputa para garantir uam poltrona, pois a viagem é longa e cansativa, acaba
gerando violência entre os passageiros, logo no momento do embarque. Na estação
de Campo Grande, cenas de violência no embarque já fazem parte da rotina dos
trens da NOB. De um lado, observa-se crianças e até mesmo adultos entrando pela
janela, enquanto os idosos e os passageiros racionais procuram assegurar seus lugares
pelas portas dos vagões. Mesmo assim, são empurrados pelos menos educados e
nenhum fiscal da rede procura amenizar esse impasse”, diz o texto.

A reportagem
também atenta a alguns problemas enfrentados pelos passageiros, como banheiros
sujos, cascas e bagaços de laranjas jogados ao chão e escamas de peixes, mortos
para serem fritos e apreciados durante o trajeto. Se não bastasse os odores e
moscas, intensificados pelo calor (ar-condicionado parecia aparelho de ficção
científica aos corajosos desbravadores pelos trilhos do Pantanal), os
sul-mato-grossenses ainda corriam risco com a violência de saqueadores e
trombadinhas nos vagões, atentos aos vacilos para bater carteiras e outros bens
de valor.

Mas isso era
fichinha quando o golpe vinha dos próprios funcionários da NOB.

 

MALANDRAGEM
DÁ UM TEMPO

Talvez o
problema mais grave, conforme descrito pelo Correio, seja a falta de
honestidade dos próprios funcionários, que se aproveitavam da ingenuidade dos
viajantes para inflacionar os preços, tabelados, e assim embolsar uma graninha
a mais.

A reportagem
relata que pediu uma refeição completa (servia-se arroz,feijão, bife, ovo,
farofa e salada de tomate), que servia duas pessoas, e dois refrigerantes, que
segundo a tal tabela sairiam 40 mil cruzeiros (R$ 14,54 em valores
atualizados).

O garçom,
contudo, cobrou 50 mil e só informou o valor correto após ser alertado por
repórter e fotógrafo. “Ficou constatado que, quando o freguês pede a
conta, ele arredonda para o preço geralmente bem mais elevado e acaba pagando
um preço que não é o real”, aponta o texto.

Arrendondar
valores é o de menos. Na reportagem, relato de passageiros humildes que pagaram
11.100 cruzeiros (R$ 4,18) na passagem, que custava 7.500 (R$ 2,72). Com o
calor, também eram comum os valores aumentarem subitamente. A água mineral
gelada, que surgia em meio ao esgotamento da reta final da viagem, saía por 3
mil cruzeiros (R$ 1,10), mil a mais que o preço tabelado, ignorado há
quilômetros.

 

HISTÓRICO

“Enquanto
este velho trem atravessa o pantanal

Só meu
coração está batendo desigual

Ele agora
sabe que o medo viaja também

Sobre todos
os trilhos da terra”

 

Os versos de
Almir Sater na música “Trem do Pantanal”, que imortalizou o apelido
pelo qual a Noroeste é chamada até os dias atuais, dão a tônica da importância
da estrada de ferro para Mato Grosso do Sul. Com extensão total de 1622
quilômetros, construída na primeira metade do Século XX, sua linha-tronco vai
de Bauru (SP) até Corumbá, na divisa com a Bolívia, onde faz integração com a
rede ferroviária do país vizinho até Santa Cruz de la Sierra. Possui um ramal
da estação Indubrasil, em Campo Grande a Ponta Porã, na divisa com o Paraguai,
e outro de Corumbá ao porto de Ladário.

A linha foi
inaugurada em maio de 1914 até o Rio Paraguai, chegando a Corumbá em 1952. Foi
nos anos 1960, 1970 e 1980 que a ferrovia viveu seu apogeu, sendo chamada por
alguns, erroneamente, como o Trem da Morte (visto que o verdadeiro Trem da
Morte era a sua extensão boliviana a partir de Puerto Suárez).

Com a
entrega da BR-262 e outras estradas, além do crescimento da indústria
automobilística, os passageiros foram perdendo o ânimo em encarar as jornadas
de até dez horas para cruzar o Estado, preferindo o ônibus, mais rápido,
confortável e com quase o mesmo preço.

Sem
movimento e diante da crise financeira da gestão do presidente Fernando Collor
de Mello, a solução ao Governo Federal para cortar gastos enquanto a
privatização não era aprovada foi encerrar viagens. Em janeiro de 1993,
acabaram-se as viagens de Campo Grande até Bauru (e Três Lagoas). Três anos
depois, foi a vez dos ramais a Corumbá e Ponta Porã, que circulavam pelos
trilhos com números insignificantes de viajantes.

De 1996 a
2009, funcionou apenas como transporte cargueiro, por conta do contrato de
concessão após a privatização, na gestão de Fernando Henrique Cardoso na
Presidência. Assim, os trens de passageiros foram desde então suprimidos em
toda a Malha Oeste. Como os trilhos foram removidos da zona central de Campo
Grande em 2004, as composições partem da estação Indubrasil, na região oeste da
Capital.

Em 2006, a
linha foi adquirida pela América Latina Logística, que a comprou do grupo
americano Noel Group, até então administradora do trecho. Mediante convênio
realizado entre o Governo do Estado e a Rede Ferroviária Federal, foi criada
uma linha de passageiros entre Campo Grande e Miranda, passando por Aquidauana,
primordialmente turística, chamada oficialmente Pantanal Express. Estava
prometido que iria até Corumbá em 2011, mas isso nao aconteceu até hoje. O
projeto foi inaugurado em 8 de maio de 2009 pelo então presidente Luiz Inácio
Lula da Silva.

A volta do
Trem do Pantanal, contudo, foi mais uma distopia e encerrou de novo o
transporte de passageiros anos após sua reabertura e novamente seu uso é apenas
destinado às cargas. Recentemente, tanto a gestão Reinaldo Azambuja (PSDB) no
Estado, quanto de Michel temer (MDB) na Presidência, voltaram os planos para o
ramal sul-mato-grossense, com o projeto do Corredor Bioceânico para escoamento
da produção agrícola ao porto no Chile, no Oceano Pacífico.

 

CONSTRUÇÃO

Desde o
Segundo Império (meados do século XIX) se discutia a construção de uma ligação
férrea do longínquo Mato Grosso ao litoral brasileiro. Até então o acesso
poderia ser feito exclusivamente por navegação pela bacia platina, o que
dependia de relações com a Argentina e o Paraguai.

A Guerra do
Paraguai/Tríplice Aliança (1864-1870) evidenciou a crítica falta de meios de
transporte àquela região. Um exemplo foi o primeiro contingente brasileiro
enviado após a declaração de guerra, que demorou oito meses para percorrer os
mais de 2 mil quilômetros entre a Capital Imperial (Rio de Janeiro) e a vila de
Coxim, na então província do Mato Grosso. Quando a coluna militar chegou ao seu
destino, este já estava abandonado e queimado pelos paraguaios.

Assim,
cogitaram-se vários planos para a construção de uma ferrovia. Um dos traçados
imaginados (1871) foi entre Curitiba e Miranda, que seria concedido ao Barão de
Mauá, entretanto nem sequer foi aprovado. Outro traçado seria entre Uberaba e
Coxim, justamente o caminho percorrido pela coluna militar supracitada. Em
1890, já sob a égide da República, foi feita concessão do privilégio de zona ao
Banco União de São Paulo, que muito depois realizou estudos apenas do trecho
inicial, que nem sequer chegou a ser executado.

Em 1904 foi
criada a Companhia Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, para quem então a
concessão foi transferida. Entretanto, a Companhia Paulista percebeu que a nova
rota acabaria desviando o tráfego diretamente para Minas Gerais e Rio de
Janeiro, passando fora do estado de São Paulo, o que seria prejudicial aos seus
negócios. Assim, sob seu patrocínio, o Clube de Engenharia do Rio de Janeiro
divulgou parecer técnico, sugerindo que a nova ferrovia deveria partir da então
vila de São Paulo dos Agudos (localidade já alcançada pelas linhas tanto da
Paulista quanto da E.F. Sorocabana), e com destino a Cuiabá.

Como o
traçado da Sorocabana já estava na iminência de alcançar a vila de Bauru,
decretou-se então que a Noroeste deveria partir dos trilhos da Sorocabana em direção
a Cuiabá.

Em julho de
1905, iniciou-se em Bauru a construção da linha-tronco. A inauguração do
primeiro trecho se deu em 29 de setembro de 1906, até Lauro Müller (km 92), no
atual município de Guarantã. A construção foi prosseguindo gradativamente.

Em 1907, o
destino da concessão federal foi novamente modificado de Cuiabá para o porto
fluvial de Corumbá, na divisa com a Bolívia, em pleno Pantanal. Em seguida
(1908), a concessão foi dividida em duas partes: a primeira entre Bauru e
Itapura (próximo à foz do Rio Tietê), e a segunda entre Itapura e Corumbá. A
primeira parte não se alterou. Já a segunda passou a figurar juridicamente como
domínio da União, embora devesse ser construída pela própria Companhia E. F.
Noroeste do Brasil e arrendada à mesma por sessenta anos.

Ainda quanto
ao trecho Bauru-Itapura, Araçatuba foi inaugurada em 2 de dezembro de 1908 e
dali a linha tomou rumo à margem esquerda do Rio Tietê, prosseguindo a Oeste
rente ao leito do mesmo até finalmente atingir Itapura no início de 1910.

A margem do
Rio Tietê, onde aventurou-se a ferrovia após Araçatuba até Itapura, era região
infestada de malária e outras doenças tropicais, algo que no início do século
XX preocupava muito. Assim, a partir da década de 1920, iniciou-se a construção
da Variante de Jupiá, mais ao Sul, seguindo o espigão divisor de águas dos rios
Aguapeí (ou Feio) e Tietê.

A variante
foi completada em 1940, quando então passou a ser considerada linha-tronco. A
partir de então, os trilhos entre a estação de Lussanvira e o novo tronco
(incluídos os das estações Ilha Seca, Timboré e Itapura) foram arrancados. O
trecho de Araçatuba a Lussanvira tornou-se o Ramal de Lussanvira. O ramal
funcionou até por volta de 1962, quando finalmente foi extinto e seus trilhos
arrancados. A estação foi submersa pelo lago da Usina Hidrelétrica de Três
Irmãos em 1990.

Em maio de
1908 iniciou-se então a construção da ferrovia Itapura-Corumbá. Duas equipes
trabalharam simultaneamente nas duas extremidades, a partir de Itapura e a
partir de Porto Esperança. A ligação foi feita em 1914, nas proximidades da
estação então convenientemente denominada Ligação.

Houve grande
dificuldade de atravessar os principais rios, Paraná e Paraguai. Devido à
grande largura do leito dos mesmos, a construção das respectivas pontes foi
demorada, pois exigiu grande complexidade de engenharia. Em ambos os casos, a
navegação foi a solução temporária.

Sobre o Rio
Paraná, até a inauguração da Ponte Francisco de Sá (1926), a travessia das
composições era feita por balsa, procedimento auxiliado por locomotivas
manobreiras nas duas margens do rio. Informações dão conta de que apenas os
trens de carga atravessavam pela balsa. Os passageiros desciam na estação Jupiá
e faziam a travessia por um navio auxiliar. Isto era feito provavelmente por
questões de segurança, conforto e celeridade, mesmo porque imagina-se que a
balsa demorava para ser carregada e descarregada.

Com a
inauguração da ponte metálica, a estação Jupiá foi transferida para a outra
margem, passando a ser a primeira estação do lado sul-mato-grossense.

A maior
dificuldade, todavia, foi no caso do Rio Paraguai. O ponto final planejado,
Corumbá, estava do outro lado, 78 km rio acima. Na estação de Porto Esperança,
inaugurada em 1912, os passageiros tomavam o navio a vapor para Corumbá, viagem
que demorava cerca de doze horas. Em pleno Pantanal, o leito do rio variava
muito, por isso nem a travessia por balsa foi instalada. Apenas em 1937 houve a
decisão de construir a ponte, pois a ferrovia boliviana já estava em avançado
estágio, tendo seu ponto final em Santa Cruz de la Sierra, região central
daquele país. A construção durou uma década, sendo inaugurada em 1947 com o
nome de Ponte Barão do Rio Branco, atualmente Ponte Eurico Gaspar Dutra.
Contudo, somente em 1952(quarenta anos após chegar a Porto Esperança) a
ferrovia chegou à Cidade Branca.

Em 1915, a
União rescindiu o contrato de empreitada e arrendamento que tinha com a
Companhia Estrada de Ferro Noroeste do Brasil da ferrovia Itapura-Corumbá, e
encampou a ferrovia Bauru-Itapura, da mesma empresa. Como resultado, tudo foi
fundido sob controle estatal e, após ter alguns nomes por um curto período,
voltou à denominação definitiva Estrada de Ferro Noroeste do Brasil.

Em 1957, a
NOB foi uma das 18 empresas formadoras da Rede Ferroviária Federal S.A., uma
sociedade de economia mista criada com a finalidade de concentrar todo o
patrimônio ferroviário pertencente à União.

“As
ferrovias foram abandonadas pelos governos autoritários (Ditadura Militar,
entre 1964 e 1985), fazendo uma alusão ao ‘milagre brasileiro’, onde governar
era construir estradas”, resumiu o então governador de Mato Grosso do Sul,
Wilson Barbosa Martins, à reportagem, em 1985.

Seguindo a
conclusão da reportagem que permeou essa lembrança, “Enfim ‘esse velho
trem que atravessa o Pantanal’ e todo o patrimônio arquitetônico que o cerca
correm sérios riscos de serem submersos juntos com as cheias do Pantanal. Tudo
pelo descaso. Tudo por acaso, ‘apenas um retrato na parede'”, concluiu. A
profecia se fez como previsto, 33 anos depois.

 

Fonte: https://www.correiodoestado.com.br/noticias/viagem-insolita-nos-trilhos-do-acaso-o-inicio-do-fim-do-trem-do/335359/


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