Uma saudade, uma cuíca e um marco legal

Sérgio Avelleda
é sócio-fundador da Urucuia: Mobilidade Urbana e coordenador do Núcleo de Mobilidade Urbana do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper


Não é sem emoção que passo a ocupar este espaço na Revista Ferroviária. A emoção vem da saudade do amigo Gerson Toller, companheiro querido de trincheira em favor da mobilidade sustentável e de nossas ferrovias. Agradeço à Regina Perez o convite para estar aqui, perturbando os leitores tão qualificados desta estimada publicação. Vem à memória, agora, o nosso querido Gerson, no meu aniversário de 40 anos, animadamente tocando sua cuíca. Espero honrar você, Gerson, trazendo uma contribuição para a mobilidade e as nossas ferrovias.

Registradas a emoção e a saudade, passemos então a tratar do terceiro componente deste singelo texto: o novo marco legal do transporte público, proposto pelo senador Antonio Anastasia, em trâmite no Senado.

Antes disso, uma pequena digressão. Vivemos a pior crise da história do transporte público. A pandemia fez exacerbar uma conjuntura desfavorável que já vinha se apresentando antes do início das medidas de isolamento social: perda de passageiros, gestão dos contratos quase sempre feita gerando surpresas e pouca atenção ao equilíbrio, financiamento do serviço limitado à cobertura tarifária e uma imagem do serviço, em geral, ruim entre usuários e não usuários.

Com a pandemia, tudo se agudizou. Os sistemas foram chamados a se manter operacionais para assegurar o funcionamento das cidades. Os custos pouco baixaram e a receita despencou. Reajustes tarifários foram congelados, enquanto o preço dos insumos disparou. Algumas cidades perceberam a necessidade de subsidiar os usuários, outras ainda não. Operadores estão falindo ou buscando o remédio da recuperação judicial.

Há uma crise grave e que demanda respostas urgentes e efetivas, sob pena de um colapso do sistema organizado e regulado de transporte público. Sim, temos críticas ao sistema formal, ocorre que, em seu lugar, pode vir infinitamente pior: clandestinos, sem qualquer regra ou padrões.

Uma das respostas que podem funcionar como medida de estabilização e, a partir daí, de prosperidade do transporte público é o projeto de lei, acima já referido, em trâmite no Senado Federal.

O transporte público tem status de direito constitucional. Foi-lhe atribuído, tardiamente, o mesmo nível de relevância que a educação, a saúde e a segurança pública. Contudo, nem de longe, ele tem o mesmo nível de comprometimento dos entes federativos na sua organização e no seu financiamento. Por exemplo, ninguém imagina começarmos a cobrar consultas no SUS ou mensalidade nas escolas públicas. Os custos desses serviços são todos cobertos pelos tributos pagos pelo conjunto da sociedade, que reconhece, assim, as suas externalidades positivas. Na mobilidade, porém, os custos, em geral, são suportados apenas pelos usuários, o que torna o sistema vulnerável a oscilações de demandas e impõe restrições severas de investimento na qualidade do serviço.

O projeto de lei propõe organizar o setor com o detalhamento dos componentes e diferentes serviços dos sistemas de mobilidade urbana, estabelecendo elementos distintivos que podem facilitar muito a organização dos sistemas locais.

Entre os grandes dramas de um sistema que depende da receita tarifária para sobreviver estão a instabilidade na prática de fixação de preços como política pública e social, que em alguns momentos tem caráter claramente populista. O projeto fixa regras claras para a estabilização da política tarifária, garantindo a quem presta serviço o mínimo essencial em qualquer atividade econômica: previsibilidade.

O projeto assegura uma racionalidade no cálculo da remuneração muito mais sofisticada do que a simples quantidade de passageiros transportados, que, além de trazer um risco de demanda ao prestador do serviço, também desestimula a busca pela qualidade e eficiência. Parâmetros como custos, qualidade e produtividade passam a compor o valor da remuneração dos operadores.

O espaço é pequeno, porém convido o leitor a ler o projeto e estimular discussões a respeito, contribuindo para o aperfeiçoamento. É a tarefa mais importante neste momento.

6 Comentários

  1. Como foi dito no comentário acima, do Mário Pereira, o senhor trabalhou como Presidente do Metrô de São Paulo e demonstrou muita competência, transparência, honradez, além de muita inovação. Tenho certeza de que muito contribuirá positivamente para a RF, a Mobilidade e os Transportes em Geral. Parabéns pelo seu trabalho!

  2. Temos um longo caminho a percorrer na seara dos serviços públicos. Nossas melhores universidades são públicas e gratuitas e são frequentadas, majoritariamente por alunos oriundos das classes mais abastadas. Esse é o exemplo mais gritante é crucial para o desenvolvimento do país, no meu modo de ver, mas o princípio pode ser levado para outros setores da prestação de serviços públicos, inclusive o transporte.

  3. Sérgio, tenho a satisfação em reencontrá-lo por aqui. A RF é um canal dos mais importantes no complexo mundo da mobilidade em que nos encontramos.
    O marco é de suma importância, merece atenção e principalmente que não caia no limbo das grandes idéias e propostas pelas quais já passamos no transporte público.
    Obrigado pela oportunidade aberta!
    Saudações

  4. Sérgio Avelleda poderá dar uma contribuição altamente positiva à RF. Como presidente do Metrô demonstrou competência, transparência e honradez.

  5. Primeiramnete parabenizo-o pelo início de sua coluna. Para nós leitores e prfissionais do setor será uma contribuição riquíssima.
    Em segundo lugar,temos sim que nos preocupar com as políicas públicas e marco regulatórios dos transportes urbanos. Mas temos também que intensificar a fiscalização das empresas prestadoras dos serviços para que sejam cumpridas todas as regras.
    Não podemos ter aqui a velha máxima do “vc finge que me paga e eu finjo que presto o serviço.”
    Um marco regulatório para o setor será bem vindo.

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